segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Homem na Piscina

Acordou com a boca azeda, o estômago girando e uma insistente falta de ar. Sentiu o corpo dolorido e as bochechas dormentes pelo contato prolongado com o chão da cozinha. Suas ressacas normalmente não eram assim e, por alguns segundos, Júlio foi tomado por aquele pânico infantil de quem acorda sem saber onde está. Aquela mesma sensação das tardes de domingo, quando cochilava em frente à TV e despertava horas depois, encontrando a casa vazia.

Aos poucos ele começou a identificar elementos de um cenário conhecido: a geladeira antiga, com pequenas ferrugens nas laterais, o fogão azul, onde sua avó fritava bolinhos de chuva, a bancada de mármore, que separa a cozinha da sala de estar e o crucifixo de madeira, com um Cristo retorcido de dor. Ele estava no casarão onde costumava passar os fins de semana; a 40 minutos do centro da cidade.

Depois do AVC de vovó, que culminou na terrível perda dos bolinhos de chuva, o casarão da família passou a ser de domínio público. Nenhum dos quatro filhos queria arcar com as despesas para mantê-la funcionando, mas também não podiam vendê-la. Pelo menos enquanto vovó ainda estava viva. Então os netos aproveitavam como podiam. O lugar estava abandonado, caindo aos pedaços, mas tinha piscina e churrasqueira, o que garantia aos jovens um mínimo de cerveja, sexo e privacidade.

E Júlio, que sempre havia usado a casa sem maiores problemas, dessa vez percebia tudo um tanto longínquo. Ele se lembra de ter chegado de carro na sexta-feira e ligado pra um ou dois amigos, chamado pra beber, mas nada além disso. O chão permanecia cheio de garrafas de vodca, comprimidos e o tempo nublado não ajudava a responder às perguntas. Que horas são?

Ele tentou levantar, mas repentinamente sua vista falhou, o som desapareceu e ele sentiu que estava partindo. E precisava voltar, antes que fosse tarde demais. Sem forças, desabou, espalmando uma poça de sangue. Esperou sentado por alguns minutos até recuperar o equilíbrio e correu os olhos pela sala de estar. Manchas de sangue. Percebeu também uma faca, dessas Tramontinas, de serra, e achou tudo um tanto novelesco. Quem mataria com uma faca de serra?

O rastro levava à parte externa da casa. Ele caminhou lentamente até a churrasqueira, que na verdade era só uma mesa de pedra e quatro bancos em ruína, e percebeu que a piscina, antes esverdeada de musgo, exibia agora uma coloração púrpura. Na superfície, de bruços, um homem boiava. Júlio virou o rosto bruscamente, como se quisesse convencer alguém de que não vira nada, mas era inútil. Tinha um corpo na piscina.

E ele teria gritado, se houvesse alguma possibilidade de ser ouvido. Em vez disso, preferiu entrar o mais rápido possível no casarão. Tinha medo de ficar ali fora, exposto, porque não entendia o que tudo aquilo significava. As drogas, o álcool, o homem na piscina... Alguma coisa tinha dado muito errado naquele fim de semana.

Quando entrou, Júlio deu com sua avó de pé na cozinha, mexendo uma massa na vasilha. Ela estava com os cabelos brancos presos num coque, vestido florido e as bochechas rosadas de saúde. Nada de cadeira de rodas. Nada de AVC. Tudo estava exatamente igual ao verão de 98.

— Vó?

— Oi, querido...

Júlio estava sem reação. Queria abraçá-la e dizer o quanto a amava e sentia falta daquela voz, daquele perfume e daqueles bolinhos de chuva, mas isso lhe pareceu traição para com sua verdadeira avó. A das mãos atrofiadas e cadeira de rodas. A senil.

— Quando a senhora chegou?

— Como assim, Júlio? Essa é a minha casa... — e ela disse isso com tanta convicção que ele achou melhor não retrucar — O que você tem, meu filho? Que cara é essa?

— A senhora viu a piscina?

— Vi. — ela ficou na ponta dos pés, como se quisesse enxergar a janela — Tem um homem morto.

— Fui eu, vó? — sentiu a voz embargar de arrependimento — Eu matei esse homem?

Ela largou a vasilha em cima da bancada, caminhou até o neto e afastou sua franja do olho, com misericórdia.

— Provavelmente...

Desesperado ele levava as mãos ao rosto, tentando identificar quando foi que tinha deixado esses impulsos psicóticos tomarem conta da sua alma. E repetia incansavelmente “o que foi que eu fiz?”, “o que foi que eu fiz?”, enquanto girava o corpo de um lado para o outro sem encontrar uma resposta.

— E agora? Fujo? Ligo pra polícia? Enterro o homem no quintal e finjo que nada aconteceu?

— Primeiro você precisa saber o que aconteceu...

— Eu não sei. — ele não conseguia segurar as lágrimas — Eu juro que não sei o que aconteceu, vó. Simplesmente acordei e encontrei a casa nesse estado. E vi o sangue... Mas eu não seria capaz de fazer uma coisa dessas. De matar uma pessoa. Tenho certeza disso. Eu não sei como se faz.

— Matar não é o tipo de coisa que se aprende. A vida é muito mais frágil do que parece. Não vê o meu caso? Bastou uma veia entupir e pluft! Tudo se acabou. Não sei mais falar, andar, cozinhar... Ninguém pode prever essas desgraças.

— Mas seu caso é diferente. Ninguém enfiou uma faca na senhora.

— Isso é só um detalhe.

Júlio olhou para o crucifixo na parede e achou que deveria pedir perdão. Ajoelhou, com o rosto vermelho, e mostrou as lágrimas pra Cristo. Pra que Ele visse o arrependimento escorrendo e fosse misericordioso. Enquanto ele orava, sua avó deixou a cozinha e veio sentar ao seu lado.

— Deita aqui no colo da vó... — não era muito digno um homem de 18 anos deitar no colo de sua avó, mas ele estava cansado demais para recusar o cafuné. E ficaram os dois ali, sentados embaixo do crucifixo, de frente pra parede, de costas pro defunto. De um lado Jesus Cristo, do outro um homicídio.

— Lembro que seu cabelo era todo cacheadinho quando você era pequeno. Era a coisa mais linda, seus cachinhos castanhos. — pausa longa e desconcertante — Pra onde eles foram? — ela passava a mão delicada pelo cabelo do neto, hora ou outra limpando uma lágrima. De repente mudou o tom. — Pra que tudo isso, Júlio? Todo esse álcool, esses comprimidos...

— Não tenho uma justificativa boa o bastante pra isso. Na verdade, eu só queria distrair a razão. Fugir. Porque a realidade era desconfortável demais pra mim.

— E conseguiu?

— Algumas vezes. Mas no dia seguinte, pela manhã, ela sempre voltava. A realidade. E quase sempre acompanhada de vergonha e culpa.

— Você era um menino brilhante. Inteligentíssimo! E lindo! Ninguém era capaz de encontrar um defeito.

— Acho que eu não soube crescer. Só isso. Eu sempre tive alguma coisa aqui dentro, alguma coisa muito grande, como um berro. Mas sempre tapavam minha boca. E eu nunca consegui realmente berrar... Sei lá. Segurar um grito assim, tão alto, deve fazer mal pro fígado.

— Você tem alma de poeta, meu filho. Sempre teve. E gente assim não consegue viver muito tempo. A não ser que se esconda e vá se abafando. De qualquer outro jeito, a tendência é sempre essa. O desamparo. Porque esse não é um mundo pra vocês.

— Mas eu sempre tive tudo. Nunca precisei ficar sozinho.

— Não era suficiente. E não culpe sua mãe... As pessoas não sabem como amparar alguém assim. Tenho certeza que ela fez o possível.

— Eu sei. Ela foi maravilhosa, sempre. Eu é que fiz tudo errado... Fui longe demais.

— É muito difícil saber a hora de parar.

— Mas e agora? E o homem na piscina? O que eu faço com ele?

— Deixa que descanse.

Júlio levantou e limpou o rosto na camiseta. Esperou sua avó ficar de pé e lhe deu um último abraço.

— Obrigado por entender.

Caminhou até a piscina mais uma vez e ficou observando o corpo flutuar, com toda a leveza do mundo. E quis ver o rosto do homem, pra saber como são os olhos de alguém que já não está.

Sentiu a água gelada tocando a ponta dos dedos, alcançou a camisa do morto e puxou com força até conseguir tirar o corpo inteiro da água. Percebeu no pulso, dois cortes profundos. A água rosada criou uma poça e Júlio virou o pescoço do homem com carinho. Primeiro pensou estar vendo seu pai ou irmão mais velho, mas logo reconheceu ali seu próprio rosto. Era ele o homem na piscina. Sempre foi. E Júlio se sentiu aliviado. E se achou bonito, com os olhos fechados.

Dentro da casa, os bolinhos de chuva ficavam prontos.

domingo, 28 de agosto de 2011

Protagonista

Ele gostava de como Ana preparava seu suco de limão. Que não era amargo nem doce. Perambulava entre o desejo e a indiferença. Ele gostava de ver Ana colocar quatro pedras de gelo, a ponto de quase transbordar, e vir equilibrando o copo até o computador.

― Como anda o livro? ― perguntou ela, enquanto tentava enxergar a tela.

― Fluindo...

― Lê um trecho pra mim?

― Ah, você sabe que eu detesto isso. Não tem nada muito definitivo ainda. Eu vou moldando o texto com o tempo ― ele deu um gole na limonada.

― Então me fala da história.

Sérgio abriu um sorriso. Ele gostava de falar sobre seu romance, realmente gostava, mas sabia que o interesse da esposa era forjado. Ana simulava uma admiração absurda para demonstrar cumplicidade e fazer o marido mais feliz. E quase sempre funcionava.

― Bom... É a história dessa menina, Luíza, que acaba se envolvendo com um homem mais velho e descobre que o cara matou uma pessoa no passado. Só que um belo dia toda a sujeira vem à tona, com uns criminosos bem barra pesada que aparecem na vida do casal. E Luíza está tão apaixonada e cega que começa a cometer uma série de crimes com o amante. ― ele respirou fundo ― O problema é que eu não sei como terminar. Quer dizer... Eu sabia como terminar, mas tive uma ideia diferente pro final. E isso tem me incomodado.

― Como era o final?

― Ah, ela tentaria sair desse submundo em que se meteu, mas não conseguiria.

― Ela iria morrer?

― Talvez. Mas agora tive uma ideia mais interessante. Vê se não é cafona... Ela entraria tão fundo, mas tão fundo na criminalidade, que acabaria matando o próprio amante.

― Eu prefiro que ela morra.

― Por quê?

― Não sei. Como é essa Luíza? Tipo... Fisicamente?

― Ela é loira, alta, tem os cílios longos, boca carnuda e os olhos amarelados.

― Ah, claro. ― Ana saiu de perto do computador, pisando forte, e começou a lavar a louça na cozinha, enquanto berrava de lá ― Claro que a protagonista da sua história seria o completo oposto da sua esposa.

― Como é que é? ― Sérgio levantou, seguindo Ana.

― Ah Sérgio, você não tá vendo? Você criou uma ninfeta! Uma ninfeta com todas as qualidades que eu não tenho. E fica escrevendo cenas eróticas pra satisfazer seu desejo reprimido ― sua voz começava a atingir um tom ameaçador.

― Eu não acredito que você está com ciúmes de uma personagem!

― Estou! Quer saber? Estou morrendo de ciúmes da Luíza! E de como ela é brutalmente mais bonita, charmosa e interessante que eu.

― Mas isso é óbvio! ― Sérgio falava rindo, pra deixar claro o absurdo que era brigar por esse tipo de coisa ― Ela foi criada pra ser interessante. Ela não existe.

― Não interessa! Pra mim, você não tem coragem de cometer um adultério de verdade e fica usando seus personagens. Chega a dar nojo. Ou pena.

― Mas Ana... Eu sou um escritor.

― Você não é bosta nenhuma! ― ela largou a louça, deu um giro de 180 graus e encarou Sérgio de forma assombrosa e cinematográfica ― Você é um professor de português que toda noite brinca de ser escritor. Você não é um escritor, Sérgio...

― Eu não vou discutir isso com você. ― ele voltou a sentar no computador, e continuou de lá ― Pra você ter uma ideia, nem cena erótica meu romance tem. Eu sempre tomo o cuidado de interromper a narração antes que as coisas esquentem. Vou até a moça ficar de sutiã e então aperto o “enter” e começo um novo parágrafo.

Ana não disse mais nada. Terminou de guardar a louça em silêncio e foi para o quarto, com os chinelos arrastando arrependimento. Não aguentou cinco minutos de televisão. Voltou ao computador. Sérgio fingia escrever.

― Desculpa. Acho que fui um pouco imbecil.

― Vou ser obrigado a concordar. ― E os dois riram, fazendo do riso a bandeira branca.

― Não leva a sério essas coisas que eu falo.

― Eu realmente não sei no que acreditar. No fundo acho que você tem essas explosões de sinceridade e depois se arrepende...

― Não. Não é verdade. Isso não é sinceridade. Eu só tento te ferir...

― Você consegue.

― Eu sei. Desculpa, tá?

Mas esse carinho culpado era uma das coisas que Sérgio mais abominava na esposa. Essa capacidade de falar o que quer, se arrepender e vir toda melindrosa, arrastando os dedos na nuca e pedindo perdão enquanto tenta roubar meia dúzia de beijos. E a partir daí Sérgio era obrigado a parar o que estava fazendo e cumprir seu papel. Porque sabia que a mulher não aceitaria qualquer sinal de desprezo. E porque precisava parecer interessado e apaixonado, o que fazia muito bem. Tão bem que Ana era frequentemente surpreendida, cinco minutos depois, com as pernas suspensas na cama e os olhos fechados de prazer.

Naquele dia ele deixou um capítulo inacabado e foi ou arrastando ou sendo arrastado para o quarto. A televisão ainda ligada. Prendeu os cabelos de Ana com as mãos e foi percorrendo seu pescoço com a língua até parar diante da camisola cor de arranque-me. E arrancou. Cuidadosamente, mas demonstrando desejo. O sutiã branco, que tanto lhe agradava, não durou vinte segundos.

Com o tempo, a casa foi ficando pequena demais para Ana e Luíza. Sérgio escrevia cada dia mais e com mais empolgação. Parece que a história finalmente estava tomando forma. E o que antes se resumia às noites de tédio, agora aparecia em cada intervalo ou refeição. Ana caminhava pelos corredores trombando em olhos amarelados, se enroscando em cabelos loiros e afundando em bocas carnudas. Por vezes chegava a ouvir a voz de Luíza, saindo de algum lugar entre a tela do computador e a cadeira.

Já não tinha mais suco de limão.

E o romance parecia não ter fim, de modo que Ana acabou esgotada. Disse que iria embora, que a situação estava insustentável. Sérgio pediu, explicou, ouviu, não entendeu, e acabou permitindo que sua mulher deixasse a casa com uma mala de viagem e a promessa de voltar durante a semana pra buscar o resto das roupas.

Foi Ana quem pediu a separação, mas ela tinha certeza que, na verdade, tinha sido expulsa de sua própria casa por uma personagem. Quando estava saindo, de mala na mão, parou no meio da rua, olhou para a janela da sala e percebeu uma silhueta feminina na cortina. Era Luíza. Magra, alta e cheia de conexões criminosas, ela consolava Sérgio que, de cabeça baixa, parecia chorar. Olhando bem, ele poderia estar só tirando os sapatos. Foi quando Ana ouviu um berro estridente de dor e graça. Agora percebia com clareza: o marido e a protagonista estavam às gargalhadas. Rindo dela. Ou será que eram lágrimas? Não, gargalhadas.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O Jardineiro

Quando Frederico chegava, toda a casa ainda estava dormindo. O casal no andar de cima, entre lençóis de cetim, e as empregadas na dependência, em beliches pouco confortáveis. Frederico tinha uma cópia das chaves, que usava para abrir o portão diariamente, às cinco e meia da manhã. Precisava chegar mais cedo, para trocar as flores de todos os vasos da casa antes que os patrões acordassem. Marta gostava de flores vivas, ainda com o orvalho da manhã, e por isso contratara um jardineiro.

Frederico sofria com as dores na coluna e tinha as unhas encardidas de terra, mas aos 65 anos não se pode ser muito exigente com o emprego. Dono de uma habilidade natural para a botânica, ele aprendera desde cedo a lidar com caules, pétalas e folhas. Sabia exatamente o que cada espécie precisava para crescer e, como um pai atencioso, regava cada uma delas conforme sua sede.

Passava o dia entre gerânios, tulipas, flores do campo e algumas roseiras; plantando, podando e acariciando sua criação. Às vezes confundia as coisas e, enquanto passava os dedos por uma rosa vermelha, se imaginava acariciando o rosto de Marta. E cheirava a flor sem saber se o perfume que sentia vinha da rosa ou da patroa. Aproveitava a ausência de Juliano, que passava o dia no trabalho, para observar Marta pela casa. Marta e a xícara de chá, Marta e sua revista Vogue, Marta e o telefone celular, Marta e suas amigas ricas... Nunca Marta e Frederico.

Certa manhã, tomado de absurda coragem e virilidade, o jardineiro decidiu fazer um agrado. Enquanto atravessava a sala, carregando uma dúzia de flores no braço, deixou uma rosa branca cair em frente ao sofá. Marta, que ainda de camisola lia o jornal, percebeu o descuido.

— Frederico... Uma rosa caiu aqui. — disse ela, estendendo a flor para o jardineiro.

— Ah, fica pra você. — ofereceu ele, apreensivo. Ela sorriu.

— Obrigada. — e largou a flor em cima da mesinha de centro.

Frederico tinha dado uma flor para Marta. E passou o resto do dia abobalhado, pensando no que a patroa pensava. Se ela finalmente começaria a ver o empregado com outros olhos, se guardaria a rosa branca debaixo do travesseiro para cheirar antes de dormir, ou se deixaria a flor esquecida na mesinha de centro, quando saísse pra academia.

O velho continuou com a brincadeira. Vez ou outra deixava uma flor cair pelo caminho, fazia um arranjo diferente, ou espalhava pétalas pelo banheiro. Sempre calado, confiante no poder das flores. Até que um dia, pouco antes do sol se pôr, Frederico fez sua aposta mais ousada. Preparou um buquê. Um buquê de rosas vermelhas. E deixou sobre o criado mudo de Marta, enquanto ela tomava banho. Foi pra casa como um adolescente apaixonado.

E no dia seguinte foi despedido. E humilhado. Juliano não havia gostado nada da surpresa do empregado. E chamou Frederico de velho tarado. Acertou as contas, mandou sumir e que nunca mais olhasse pra sua esposa. Frederico obedeceu.

Já em casa, ele decidiu se vingar. E começou a preparar suas ferramentas. Afiou a tesoura de jardinagem, limpou a enxada, preparou o serrote e guardou tudo na maleta de trabalho. Não sentia medo. A certa altura da vida, se tem muito pouco a perder. E Frederico não tinha nada.

Chegou às cinco e meia da manhã seguinte, como em um dia de trabalho qualquer. E com o coração explodindo de adrenalina, ajoelhou em frente a uma roseira. Abriu a maleta, tirou a tesoura e, com enorme frieza, degolou uma flor. Respirou fundo e, calmamente, começou a cortar todas as flores do jardim, num doloroso exercício de sadismo. Primeiro com a tesoura, sem sujar as mãos, depois com a enxada, enquanto ia se transformando em animal. Aos poucos, Frederico destruiu tudo o que por anos cultivara. Folhas, raízes e pedaços de caule voavam. As plantas, esquartejadas, pareciam gemer. E a raiva do jardineiro já não cabia em ferramentas. Largou a enxada e foi, com as próprias mãos, terminar o serviço. Estraçalhou cada uma das flores daquele jardim, e atacou as roseiras, sem se preocupar com os espinhos. Acabou deitado entre os corpos, exausto. As mãos sujas de sangue e pétala.

sábado, 28 de maio de 2011

Epiderme

Chovia. Não aquelas chuvas torrenciais do fim das tardes de verão. Chovia educadamente, como um aviso antes de partir pra ignorância das enchentes. E Cláudio caminhava sem pensar nos passos ou na direção. Tinha a mente vazia, assustada, incrédula.

— Como foi lá na Manu? — perguntaram os amigos, quando ele chegou ao bar.

— É... — foi tudo o que conseguiu dizer: uma vogal aberta. E os três rapazes, que em todo fim de expediente se encontravam num boteco, não precisavam mais que isso para deduzir a resposta. Permaneceram em silêncio, em respeito à dor do amigo. — Não teve jeito. Acabou tudo. De verdade.

— Essas coisas são assim mesmo. Vocês já brigaram outras vezes e, uma semana depois, estavam juntos de novo ― falou André.

— É... Namoro longo não acaba fácil. — completou Márcio, o mais jovem do grupo.

— Mas o pior foi a forma como ela me tratou. Sabe? Sem nenhum traço de carinho... — disse ele, ignorando as frases de consolo dos amigos — Não parecia que a gente tinha passado dois anos da nossa vida juntos. Ela parecia uma estranha.

— Tenta não pensar nisso agora, vai. Toma uma cerveja... Relaxa.

Cláudio queria muito tomar a cerveja, mas preferiu evitar o clichê. Sentia pena de si mesmo, ali, sentado numa mesa de bar, com a calça molhada e os olhos vermelhos. Às cinco da tarde, quando saiu do trabalho em direção à casa de Manuela, ainda tinha uma esperança de que seu namoro pudesse ser salvo, apesar de todas as evidências provarem o contrário. Já fazia alguns meses que as coisas não iam bem. As conversas amenas tinham dado lugar a intermináveis discussões sobre o relacionamento. Os dois tinham chegado naquele estágio em que é mais importante encontrar o defeito no parceiro que a qualidade. E defeito eles tinham de sobra.

Assim que abriu a porta, toda a esperança de Cláudio evaporou. Manuela estava de blusa preta e uma calça jeans apertada o suficiente para valorizar cada um dos seus 20 anos de idade. Ela não sorriu. E não sorrir, no caso de Manuela, significava completo desinteresse. Ela sabia que esse era seu grande trunfo e vivia distribuindo sorrisos pela rua, encantando os transeuntes.

— E aí, o que aconteceu? — perguntou ele, ainda imóvel na sala.

— Você sabe o que aconteceu, Cláudio... Não me faça ter que contar tudo de novo.

— Eu só não entendo. — ele sentiu a garganta apertar e preferiu parar a frase por aí.

— Eu gosto muito de você, já te disse isso. Te acho um cara maravilhoso, inteligente, esforçado... Mas você tem seu apartamento, seu emprego e seus 26 anos de idade. Eu só tenho 20. A minha vida está só começando... Você realmente achou que eu não fosse conhecer mais ninguém? Que eu não fosse me apaixonar de novo? — ele continuava calado — Essas coisas a gente não escolhe.

— Claro que escolhe! — ele começou a aumentar o tom de voz, embargado pelo medo da solidão — Eu escolhi você! E a partir do momento que tomei essa decisão, as outras mulheres passaram a não existir pra mim.

— Ah, por favor, né? — finalmente ela sorriu, mas não da forma como ele esperava. Ela sorriu seu sorriso de deboche. E sempre que fazia isso, Cláudio se sentia o mais estúpido dos homens. — Tenta ser um pouco menos cafona nessas horas.

— Você tá sendo infantil, Manuela.

— Eu? É você que não consegue entender. A gente só está terminando porque eu não quero ser desleal, tá bom? Não acho justo.

— E acha justo fazer o que você tá fazendo comigo? — seus olhos começaram a brilhar.

— Você prefere ser corno? É isso?

 Ah, a crueldade de Manuela! Quando decidia organizar as palavras com o intuito de ferir, ela era imbatível. A maioria das pessoas solta um palavrão agressivo e se dá por satisfeita. Manuela prefere destilar pequenas doses de maldade, fazendo perguntas cuja resposta quase sempre é humilhante. Sua lógica é cruel, de tanto sentido que faz.

Cláudio decidiu apelar para um último argumento.

— Eu gravei o seu nome na minha pele! — disse ele, levantando a manga da camisa e deixando à mostra sua pequena tatuagem no antebraço, onde lia-se “Manuela” em letra de forma.

— E eu nunca concordei com essa babaquice! Pedi milhões de vezes pra você não fazer essa tatuagem.

— Mas eu queria provar o meu amor por você.

— Muito bem, está provado. — ela cruzou os braços, indicando o fim da discussão ― Agora pode ir.

— Que merda, Manuela! — Cláudio virou as costas e saiu do apartamento, batendo a porta com violência. Desceu pelo elevador. Aos prantos.

Os amigos do bar tentavam agir com naturalidade, mas nenhum deles sabia realmente como lidar com a situação. Mudaram de assunto, pediram fritas, outra rodada de cerveja, e Cláudio permaneceu calado.

― Come uma batata pelo menos.

― Não gente, eu tô um pouco indisposto. Acho que vou pra casa. Na verdade eu vim mesmo só pra dar satisfação pra vocês. ― Cláudio foi levantando da cadeira.

― Quer que eu vá com você? ― se ofereceu André.

― Não precisa. Prefiro ficar sozinho... Vou tentar ler um pouco, tirar um cochilo... Obrigado. ― Trocaram olhares de qualquer coisa e Cláudio deu as costas.

A chuva já perdera muito da sua educação quando Cláudio saiu do bar. E no caminho, enquanto via suas lágrimas desaparecerem no asfalto molhado, ele mudou de ideia. Foi até um supermercado e comprou duas latas de cerveja e um saco de batatas congeladas.

Abriu a porta do apartamento e pela primeira vez não imaginou Manuela sentada no sofá. Foi até a cozinha de centímetros quadrados, abriu o saco de batatas e encheu uma panela de óleo. Acendeu o fogo, jogou um palito de fósforo e esperou. O líquido amarelado começava a borbulhar, o palito dançava... De repente o fogo. Era o sinal.

Cláudio pegou a panela, levantou a manga da camisa e despejou o óleo fervente em cima do antebraço.

Manuela nunca mais.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Coisas da Idade

Saíra mais cedo da festa por não considerar nenhuma daquelas pessoas merecedoras da sua presença. E essa dificuldade em encontrar as chaves? E abrir a porta sem acordar os pais? E essa vergonha de não ter resistido aos papos vazios, às músicas altas, e ter finalmente se assumido indiferente? Era até gostoso pensar que aquilo realmente não lhe atraía. Mas preocupante. Algum dia seria ele capaz de se empolgar? Por que se sentia tão importante a ponto de nada lhe pagar os olhos marejados ou o espanto? Espanto. Não sabia ao certo há quanto tempo não se espantava.

Na cabeceira, três livros jogados. Os três ainda por ler. Ele até poderia começar um deles, mas se conhecia bem a ponto de saber que em menos de duas páginas já estaria tombado, com a baba no canto da boca e o pescoço torto. Como se detestava nessas noites, quando criava desculpas pra explicar sua preguiça. E vejam bem, estava prestes a completar 26 anos.

Ainda morando com os pais, ainda adiando a leitura de livros, ainda se achando importante demais pra vida. Mas era fácil pensar, aos 18, que as coisas estavam apenas começando. Que ainda seria dono de ideias brilhantes e produziria qualquer coisa torta ou reta digna de obra de arte. Que emocionaria as pessoas. Que seria lembrado. Que diriam dele: oh, que disciplina! Oh, que perfeccionismo! Oh, que talento! Talento... Coisa que a gente finge que tem pra não morrer de desgosto.

No espelho, já não parecia adorável. Já não tinha cabelos lisos, nem dentes livres de obturações. Precisava de óculos. Mais que qualquer outra coisa... Precisava de óculos. E nem era miopia, era vista cansada. E também tinha a boca e os dedos cansados. Talvez estivesse um pouco embriagado e por isso seu reflexo parecia tão envelhecido. Mas logo apalpou o próprio braço e viu que o reflexo não fazia nada além de refletir. Estava flácido. Encontrou até umas manchas na pele. Já cheirava a guardado.

Começou a chorar, porque seria difícil demais conviver com o apodrecimento do próprio corpo. E o sentimento que lhe invadia era de arrependimento. Poderia ter aproveitado muito mais sua juventude. Aquele era o tempo de usar bermudas floridas e camisetas regatas. Aquele era o tempo de simular calor e tirar a blusa perto das garotas. Aquele era o tempo de ir à praia. Mas ele preferiu se isolar. Nas férias, preferia ler a brincar com os primos. Idiotas, amanhã eles vão estar pobres. Mas na verdade, o idiota era ele. Não adiantava adiar as coisas boas da vida, esperando um futuro de plena entrega ao prazer. Ou a pessoa nasce pra ser feliz hoje, ou não.

Agora estava claro que ele não tinha muito tempo pela frente. Que todas as pessoas de sucesso começaram cedo. E se ele, aos 26 anos, ainda não tinha nada, talvez fosse a hora certa de se dar por vencido. Antes que tudo fique ainda mais constrangedor. Antes que sua família descubra o disfarce. Que ele não é tão inteligente assim, nem tão criativo.

Mais uma vez o espelho lhe devolvia a imagem de um homem acabado. Tinha olheiras profundas. No lugar dos olhos, dois sofrimentos escuros. Passou a mão pelos cabelos e percebeu que estava ficando careca. E se imaginou perdendo preciosos minutos, organizando o cabelo de modo a disfarçar a calvície. Quando o vento batesse, seria ridículo. Não se sujeitaria.

Começou a arrancar os fios que lhe restavam com a própria mão. Em pouco tempo o chão do quarto era um mar de cabelos castanhos. Não é pra ficar careca? Pois fiquemos! Perdeu as forças. E se deixou cair, calvo, enrugado, envelhecido... O pouco de sangue que escorria do couro cabeludo agora se misturava às lágrimas.

Buscou na cozinha uma lata de cerveja e um copo grande, onde despejou todos os comprimidos pra dormir que ainda guardava na gaveta e infinitas gotas de antitérmico. Tapou o nariz pra resistir ao vômito, mas teve que mastigar alguns comprimidos, porque começou a se sentir entalado. Bebeu a cerveja por cima e esperou a dor do desconhecido.

No dia seguinte, durante o velório, comentaram:

— É uma pena. Um garoto tão jovem...

24 de dezembro de 2010

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sobremesa

Quando ouviu os gritos da irmã mais nova, vindos do quintal, Mariana largou as bonecas e seguiu confiante até a porta dos fundos. Era Jorginho da casa ao lado, que suspendia o vestido de Lúcia, ainda com sete anos. “A gente casou, agora tenho que te ver pelada”. “Mas era brincadeira, Jorginho... Eu não posso ficar pelada pra você. Isso é errado!”.

— Larga minha irmã agora, seu babaca!

Jorginho paralisou, assombrado. Lúcia se recompôs, envergonhada. Mariana avançou em direção ao muro, furiosa. Agarrou a camiseta do vizinho, mandou que sumisse se não quisesse perder o pinto. Ele sumiu.

— Obrigado, Mariana. Ele não sabe brincar direito, eu acho.

— O problema desse tipo de brincadeira, Lúcia, é que ninguém sabe realmente até onde é direito.

Ficaram as duas, pensativas, sentadas no chão do quintal. Mais tarde, quando os pais chegaram foram ter com eles o jantar. Só três biscoitos de chocolate pra sobremesa. Duas filhas.

— Mariana, a Lúcia pode ficar com um biscoito a mais? Ela é mais nova... — sugeriu o pai, entregando um biscoito para filha mais velha e dois para a mais nova.

— Claro que não! A gente parte no meio.

Mas Lúcia, percebendo o perigo iminente, já tinha enfiado os dois biscoitos na boca. Apesar de mal conseguir mastigá-los, eles estavam lá. Eram só dela. “Ih, tarde demais”. E Mariana sentiu o sangue borbulhar. A irmã com a boca cheia, quase rasgando, os farelos pulando para a mesa... Tarde demais? Molhou os lábios.

— Pai, a Lúcia ficou pelada pro Jorginho hoje à tarde. — anunciou, com frieza.

— Como assim, pelada? Que história é essa?

— Também não sei a história. Só sei que a Lúcia tava sem vestido e sem calcinha, se mostrando pro Jorginho, no quintal. Não queria contar, porque eles brincam toda tarde e eu só fui ver hoje.

— Não é verdade! — Lúcia tinha cuspido a massa marrom de chocolate na mesa para se explicar — Ele tentou tirar meu vestido, mas eu não deixei.

— Mas que tipo de brincadeira vocês estavam fazendo? — perguntou a mãe, horrorizada.

— Era como se fosse um casamento...

E Lúcia continuou se explicando como podia. Os pais não aceitariam, proibiriam a menina de sair de casa, iriam falar com os pais do Jorginho, seria o diabo. E Mariana calou-se, pegou o biscoito de chocolate que lhe coube, o único, e comeu da forma mais lenta e saborosa possível.

14 de agosto de 2010

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A Mesma Cozinheira

Chegou no barracão soltando fumaça.

— Quem ela pensa que é? "Isso aqui tá imundo!" Imunda tá a cara dela, que eu passei a tarde inteira limpando aqueles vidros...

— Calma, mãe. — pediu a filha mais velha, levantando do sofá.

— Isso não é justo! — ela começava a tirar a roupa, indignada — Trabalhar em casa de família só dá nisso mesmo... É uma humilhação atrás da outra.

Tomou banho, ligou a TV de 17 polegadas no jornal e foi preparar o jantar dos filhos. Mas continuava nervosa, com uma centena de desaforos entalados na garganta.

— Ela se acha muito chique, comendo naquelas louças importadas dela... Mas a comida que eu faço lá, eu faço do mesmo jeitinho aqui em casa. Vocês, pobres do jeito que são, têm a mesma cozinheira que ela.

O filho do meio pegou um prato e foi se servir no fogão.

— A única diferença é que os ingredientes de lá são melhores, né mãe?

— Não. A única diferença é que na comida dela... Eu cuspo!

10 de março de 2010

terça-feira, 24 de maio de 2011

Meia Dose de Culpa

Eram 11 da manhã, e Reginaldo se preparava para abrir o bar. Tinha passado as últimas duas horas varrendo o chão e limpando cada uma de suas mesas, na vã tentativa de melhorar o aspecto sebento do ambiente. Ao primeiro sinal de cansaço, o quase velho foi até o armário a agarrou uma garrafa de vodka. Adorava quando sobravam garrafas abertas da noite anterior. Era uma forma de enganar a culpa. Só estava continuando um serviço começado. Encheu um copinho de vidro até a boca e caminhou com ele pelo bar. Reginaldo e a vodka. Desses amores implacáveis. Gostava de beber na despensa, onde conseguiam ficar a sós. E a cada gole no copo de vidro, dava um pulo o seu coração. Caidinho pela vodka, o pobre homem.

— Reginaldo! — era a voz, feminina e incisiva, que ele menos queria ouvir naquele momento. Decidiu ignorar. Talvez ela fosse embora, apesar de já saber que não, ela ficaria e esmurraria o portão do bar até ser atendida. — Ô Reginaldo, sou eu, Carmem... — É, não tinha jeito. Encheu a boca num último e grande gole e largou o copo pela metade, na prateleira mais alta da despensa. Voltaria a ele, depois de se livrar da maçante.

Assim que ergueu o portão, Carmem avançou... Com o quadril empinado e os cabelos volumosos. Parecia mais gorda que da última vez que tinham se visto.

— A Maria, do salão, foi lá em casa me cobrar o corte do cabelo do Léo. Você não disse que ia pagar?

Reginaldo coçou os cabelos grisalhos, já imaginando o fim da conversa, com Carmem lhe chamando de irresponsável e jurando nunca mais deixar Léo sob os cuidados do pai.

— Eu ainda não paguei. — disse ele, com a voz mansa de quem pede perdão. — Naquele dia eu tava um pouco enrolado com as contas do bar. A situação não tá muito boa.

— Eu não sei como eu continuo acreditando nas suas lorotas... Já era pra eu ter acostumado. Você nunca paga nada pro seu filho! O menino vai fazer 12 anos e o que você já deu pra ele?

— Ah, Carmem... Não começa não! Eu pago o dentista do Léo.

— Paga o que?! Você leva ele no consultório do Paulão, que é seu amigo e nem diploma tem. Daqui a pouco o menino tá com o dente todo podre e vai ser mais uma despesa pra quem? Pra mim, claro. — era melhor não discutir. Reginaldo conhecia todos os argumentos de Carmem e sabia que, infelizmente, ela tinha razão.

— Me diz quanto foi o corte de cabelo, então...

— 10 reais.

— Tá bom. À noite eu peço pra alguém levar o dinheiro na sua casa...

— Nada disso! Dessa vez não tem conversa, Reginaldo... Eu quero esse dinheiro agora mesmo!

— Mas agora eu não tenho. Nem adianta insistir. — ele segurou o braço de Carmem e foi lhe conduzindo até a saída do bar. De repente ela estancou, apertou as bochechas do homem e arregalou o olho direito, enquanto sugava o mundo com as narinas.

— Você tava bebendo?

— Não... Não tava. Era só um restinho da vodka que...

— Eu não tô acreditando! 11 horas da manhã... — Reginaldo se calou — É por isso que você nunca tem dinheiro nesse bar. Bebe mais do que vende! Não é capaz de se controlar...

— Eu não tava bebendo, era só um restinho. Pra poder jogar a garrafa fora.

— Você lembra porque a gente se separou, Reginaldo? Você lembra o que acabou com o nosso casamento?

— Lembro. — disse ele, cabisbaixo.

— E você vai continuar bebendo? Hum? Perdeu a mulher, perdeu o filho... Tá esperando perder mais o que, pra parar com essa desgraça?

Reginaldo pensou em responder “a vida!” e encerrar o assunto. Estava cheio dos infinitos sermões que ouvia da ex-mulher, pelo mesmo motivo.

— Só você não percebe o buraco onde tá caindo, Reginaldo. Não tem fim. Você vai acabar perdendo esse bar também e não vai ter ninguém pra te socorrer. Eu tô te avisando agora, mas depois, quando a coisa apertar, não adianta bater lá em casa não. Porque eu (pausa) não (pausa) ajudo (pausa) bêbado.

— Tá bom, Carmem... Você quer o dinheiro? — Reginaldo foi até o balcão e abriu o caixa com violência — Toma! Tá aqui! Dez reais. Agora pára de encher o saco e sai do meu bar!

Carmem recebeu o dinheiro com desdém, mas não desviou o olhar de Reginaldo, com um pouco de pena e um tanto de ódio.

— Você não tem jeito mesmo... É um irresponsável!

— Exatamente! — disse Reginaldo, enquanto levava a ex pra fora. — Sou um irresponsável. Agora some!

Ele empurrou Carmem pela última vez e desceu o portão de ferro.

— E outra... — gritou ela, do lado de fora — Você nunca mais vai ficar com o Léo. Nem por um dia! Entendeu?

— Perfeitamente!

Dois segundos depois e Reginaldo estava chorando como um bebê, no chão do boteco. Triste por ter dado o único dinheiro que tinha pra comer e jurando nunca mais tocar em bebida alguma, a não ser pra servir a clientela.

Ele cumpriu sua promessa, até as nove da noite, quando o bar finalmente deixou de ser um deserto e recebeu seus primeiros e únicos clientes do dia. Quatro mulheres, na casa dos 20, desceram de um Gol prata e ocuparam uma das mesas do bar, enquanto gargalhavam com charme.

Reginaldo precisou esfregar os olhos. Ajeitou a postura, sorridente, e foi em direção à mesa, pra atender as damas.

— Boa noite.

— Oi... Traz pra gente uma rodada de... Cerveja, né? Pra começar. — a loira esperou que todas concordassem e finalizou — É... Uma rodada de cerveja, por favor.

— Brahma, Antártica ou Itaipava?

— Brahma.

Enquanto Reginaldo buscava os copos e as garrafas, no balcão, as quatro garotas ficaram na mesa, rindo e planejando o resto da noite. Aquela era só a primeira parada.

— Cadê o seu copo, tio? — perguntou uma ruiva de piercing nos lábios, quando Reginaldo chegou na mesa, trazendo a cerveja.

— O meu?

— É... Traz seu copo e senta aqui com a gente... O bar tá vazio.

— Não, não... Que isso? Eu tô trabalhando.

— Ah tio... — pediu a loira, com voz adocicada — A gente tá te convidando. Vem beber com a gente!?

Reginaldo achou aquilo tudo muito estranho, mas muito irresistível. Fitou cada uma das garotas com desconfiança, mas preferiu não contrariar as crianças. Pouco tempo depois, ele já estava completamente enturmado. Perdera as contas de quantos copos já tinha tomado e, as cervejas que ocupavam a mesa, agora davam espaço a velha e boa vodka que, já começava a lhe subir à cabeça.

— Eu quero que vocês saibam, que eu não sou de beber desse jeito... — se explicou, o dono do bar.

— Nós também não, tio. — respondeu uma ruiva, baixinha, e todas as outras caíram na gargalhada.

A loira tomou a palavra, estendendo a garrafa de vodka para Reginaldo.

— Agora, pra terminar a noite... A gente quer ver você matar essa diaba! — as garotas se ouriçaram.

— Não, gente... Essa garrafa ainda tá muito cheia. E se eu beber mais, não consigo fechar o caixa de hoje.

— Ah tio, deixa de conversa...

Um segundo de dúvida.

— Tudo bem, tudo bem... Vou tentar.

Reginaldo pegou a garrafa e começou a beber direto no gargalo. Sua garganta queimava, mas ele estava disposto a não parar até que terminasse. Percebendo a dificuldade do tio, a loira arrancou a garrafa de sua mão.

— Deixa que eu termino. — E, com uma força brutal, golpeou a cabeça de Reginaldo, que caiu, apagado, no chão do bar.

Foi abrir os olhos na manhã seguinte. O sangue já estava seco, na testa, e cacos de vidro minavam o bar. Aos poucos, Reginaldo se lembrava da noite anterior. Quando levantou, encontrou o bar vazio. O balcão vazio. O armário vazio. As quatro garotas tinham lhe roubado tudo. Todas as garrafas de vinho, os wiskies caros e as vodkas... Suas vodkas.

Desatinado, Reginaldo começou a andar pelo bar. Só lixo e papel. Sem garrafas, nem dinheiro. Já não conseguia segurar as lágrimas. Se sentia estúpido e ingênuo, enquanto ouvia a voz de Carmem lhe gritando aos ouvidos: “irresponsável!” “bêbado!”.

Foi quando ele percebeu um estranho reflexo, numa das prateleiras da despensa. O copo de vodka, que Carmem lhe impedira de terminar, continuava ali, no mesmo lugar. Em instantes sua tristeza cessou.

E com a euforia de um menino, Reginaldo segurou o copo e bebeu, com carinho, aquela meia dose de vodka. Não havia mais Carmem, nem as quatro ladras da noite anterior. Não havia mais culpa nem desespero. O mundo tinha parado um instante, e agora era só de Reginaldo. Reginaldo e sua amante.

6 de março de 2010

domingo, 22 de maio de 2011

Morte Agendada

“Só Deus sabe o quanto eu tentei ser feliz. Desde pequeno imaginava que minha vida seria diferente, que eu seria diferente. Sonhei pra mim qualquer coisa mais interessante que essa rotina que eu estava levando. Não culpo a Ludmila e até peço perdão por alguma lágrima que porventura venha a cair do seu rosto. A culpa é minha e da sucessão de desprazeres em que transformei meu dia-a-dia. A rotina me matou.
Fausto Corradine”

Sua caligrafia estava até razoável, levando em consideração o tanto que suas mãos tremiam. Sozinho no quarto, Fausto acabava de tomar a decisão mais importante de sua vida. Iria se matar. Programou tudo para a sexta-feira daquela semana. Conhecia um acesso ao telhado do prédio em que morava e era de lá que pularia, quatro dias depois de redigir sua despedida em uma folha de caderno.

Em outubro, Fausto completaria 44 anos, 20 deles trabalhando como funcionário público. Era casado com Ludmila, uma mulher mais velha que compartilhava com ele o gosto pelos números e o desprezo pelo governo. Os dois dividiam um apartamento grande e confortável, não deviam nada a ninguém e quase nunca se desentendiam. Sem filhos, eles não tinham muito o que conversar e passavam, às vezes, uma semana inteira sem se falar, envolvidos com seus afazeres individuais.

Fausto acordava antes das sete pra dar tempo de buscar pão fresco na padaria, tomar uma ducha e chegar ao trabalho com cinco minutos de antecedência. Sempre pontual, sempre impecável. Trabalhava até as seis da tarde sentado na frente de um computador, realizando tarefas que exigiam de sua capacidade intelectual o mesmo que se exige, talvez, em testes com macacos superdotados.

Quando chegava em casa, Fausto tomava banho, lia as correspondências, ouvia o Jornal Nacional enquanto comia lasanha de microondas e começava a trabalhar na sua tese de mestrado. Às 23h, já cansado e sonolento, ele desligava o computador e ia pra cama. Ali trocava raros murmúrios com Ludmila e desmaiava de cansaço.

Todo dia aquela programação se repetia. Cada vez mais cansativa, cada vez mais insuportável. Como era um homem que pensava no futuro, Fausto tinha uma pequena fortuna na poupança. Gastava só com o essencial e guardava o resto para a aposentadoria e, se necessário, alguma emergência. Como não tinha tempo, ele jamais aprendera a tocar bongô, o grande sonho de sua juventude. E como estava muito impaciente e cansado nestes últimos meses, sua tese de mestrado ficava cada vez pior. Nunca um assunto lhe pareceu tão desinteressante.

Fausto estava cercado por um muro que ele mesmo construíra. Preso no seu próprio perfeccionismo e ansiedade. E não via outra saída para aquilo tudo. Não suportaria fracassar no emprego ou perder o mestrado e não tinha coragem de assumir esse medo pra ninguém. Por isso, naquela segunda ele decidiu morrer. Terminaria seus dias de forma brilhante, caindo de um prédio de 15 andares ao pôr-do-sol de uma sexta-feira. Encontrariam seu bilhete dobrado no bolso, já sujo de sangue, e entenderiam o suicídio.

Com a morte agendada, Fausto não fora ao trabalho naquela semana. Desligou telefones, celulares e não quis responder às perguntas da esposa, surpresa com a mudança radical de comportamento. Ao invés disso, ele se matriculou em uma aula de bongô. Tinha pressa. Até sexta-feira teria que saber pelo menos um acompanhamento. Realizaria finalmente o sonho tão adiado.

E já que iria morrer, Fausto não via sentido em guardar mais nenhum centavo na poupança. Com o dinheiro sacado ele pagou os mais caros restaurantes da cidade, comprou jóias para Ludmila e fez uma viagem de um dia ao Espírito Santo. Foi sozinho para aproveitar melhor, nem que fosse apenas uma manhã de praia.

Assim que tirou o tênis e pisou na areia, Fausto sentiu a leveza que procurava há 44 anos. Olhou para o mar, esverdeado, chicoteando o litoral e agradeceu aos céus pela beleza da vida. E chorou, por descobrir tão tarde como é bom ser livre.

Quando voltou de viagem, faltava apenas um dia para seu suicídio. Neste dia Fausto passou a olhar as pessoas com uma generosidade incomum. Talvez, por estar tão próximo da morte, se sentia mais puro, mais espiritualizado. Saiu com a bolsa cheia de dinheiro e distribui notas de cinquenta entre todos os meninos de rua que encontrou pelo bairro.

Quando voltou pra casa, foi abordado por uma Ludmila esbaforida:

— Fausto! Seu chefe já me ligou quinhentas vezes querendo saber o que aconteceu com você. Por que você não foi pro trabalho nenhum dia essa semana?

Fausto soltou uma gargalhada.

— E o que você disse?

— Ah, eu inventei uma mentira qualquer... Disse que você estava doente, gripado. Na verdade, nem eu sei o motivo!

— Não tem que saber.

— Como não tem que saber? Um dia você me chega com um monte de jóias caras, no outro você viaja pra sei lá onde, fazer sei lá o que! Fausto, você não tá se metendo em nenhuma enrascada não, né?

Ele continuou sorrindo, chegou perto de Ludmila, o mais perto que conseguiu, estava a poucos centímetros de seus olhos verdes e admirados, quando perguntou:

— Você acredita no meu amor?

— Que história é essa agora?

— Não é história. É uma pergunta. Só quero que você responda com sinceridade: Você acredita que eu te amo?

Ludmila desviou o olhar e se afastou de Fausto com um passo vacilante.

— Sinceramente... Eu nunca acreditei no seu amor. Nunca. — ela respirou fundo, parecia nervosa — Mas olhando agora para os seus olhos, que estão tão diferentes, tão brilhantes, é impossível negar esse sentimento. É estranho, mas hoje você me ama.

Fausto se aproximou novamente de Ludmila e segurou suas mãos.

— Não só hoje, mas a partir de hoje.

E eles se beijaram e se amaram a noite toda, como nuca haviam feito antes. E Fausto dormiu até o meio-dia, porque seu único compromisso naquela sexta-feira só estava marcado para o pôr-do-sol.

Quando começou a entardecer, Fausto foi ficando melancólico. Sentia um pouco de medo também. Será que morrer dói? Será que ele sentiria o impacto do seu corpo contra o concreto ou morreria durante a queda, quando seu coração fundiria por bater tão rápido?

Às 17h30, Fausto pegou o bilhete de despedida que tinha guardado na gaveta e o colocou no bolso. Tomou o cuidado de não ser visto por ninguém e subiu para o telhado do prédio, usando a escadinha da zeladoria. Ludmila só chegaria do trabalho às sete horas. Até lá o sol já teria se posto e seu corpo já estaria frio.

A vista, de cima do prédio, era encantadora. O céu estava vermelho, ventava pouco. Fausto foi caminhando, com lágrimas no rosto, até uma das extremidades do prédio. A altura era grande e ele evitava olhar para baixo para não vacilar na decisão. Continuou avançando até ficar com as pontas dos pés ao ar livre. A um passo do fim de sua vida.

Foi aí que Fausto pensou nos seus últimos dias de vida. Lembrou de como aqueles momentos tinham sido agradáveis. Como, sem querer, ele tinha descoberto a fórmula da felicidade. Lembrou do som do bongô, que finalmente aprendera a tocar, do gosto de água salgada do mar do Espírito Santo e do cheiro da pele de Ludmila, depois de uma noite de prazer.

De repente tudo estava muito claro. Ele tinha se livrado daquela rotina torturante que há uma semana lhe fazia tão mal e agora poderia recomeçar a viver como sempre sonhou. Estava ansioso por outros momentos como aqueles. Era isso! Não precisaria morrer. Não iria mais morrer.

Fausto já estava dando a meia volta em direção à terra firme quando tropeçou no cadarço. Terminou seus dias de forma brilhante, caindo de um prédio de 15 andares ao pôr-do-sol de uma sexta-feira.

25 de julho de 2009

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A Parada de Ônibus

Gostava de passear com o cachorro sempre àquela hora, não porque o clima do entardecer era mais agradável ou o trânsito menos barulhento, mas por causa de uma garota de cabelos loiros que, dia sim dia não, esperava um ônibus no ponto da esquina.

Na primeira vez que a viu, quase não conseguiu desviar o olhar. Ela tinha as pernas cruzadas com elegância, os olhos esverdeados fitos no horizonte e os cabelos presos num rabo-de-cavalo. Havia certo erotismo velado naquela pose, ele tinha certeza. Sempre que passava em frente àquele ponto, o garoto demorava mais que o normal e deixava seu cachorro á vontade para vasculhar o mato enquanto apreciava, discretamente, seu amor platônico. Não sabia quem ela era, pra onde ia todas as noites ou onde morava.

Certo dia tentou uma aproximação. Levou a carteira, que normalmente deixava em casa, e a colocou no bolso de trás da calça jeans, pronta pra cair a qualquer toque. Quando passou em frente à parada de ônibus, fingiu uma ajeitada no bolso e deixou a carteira cair, sem olhar pra trás. Por um momento pensou que ela não tinha visto, ou que não iria falar, mas continuou andando, cheio de esperança.

— Ei... Sua carteira caiu. — Disse a garota, finalmente. Ele se virou, o rosto vermelho, o coração acelerado, e pegou a carteira do chão.

— Nossa, obrigado! Eu sou muito distraído. — Disse ele, meio no susto, meio no ensaio. E nos cinco segundos mais mágicos de sua vida, ela sorriu. Seus lábios carnudos se movimentaram com delicadeza até salientar duas covinhas no rosto. O mundo parecia se debruçar sobre o charme daquela garota.

Na outra semana, ele foi ainda mais ousado. Desta vez não desceu com o cachorro. Foi sozinho e perfumado e sentou-se ao lado dela na parada. A idéia era pegar o mesmo ônibus (seja lá qual fosse) e poder passar pelo menos mais vinte minutos ao seu lado. Enquanto esperava o transporte, nenhum dos dois quebrou o silêncio. De vez em quando ele lançava olhares furtivos pelo canto do olho, mas ficava só nisso.

Já estavam ali há trinta minutos, as principais linhas já tinham passado e nada da garota se manifestar. Foi quando um carro amarelo, com um som infernal parou ao lado deles. A garota se levantou, sentou no banco do carona e beijou o motorista. O garoto, decepcionado, ficou sentado na parada, esperando um ônibus que nunca chegaria.

6 de julho de 2009

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Quadro na Parede

Tinha se mudado há pouco tempo para a casa do seu tio distante. Ocupava um quartinho minúsculo, nos fundos de um apartamento antigo. Assim que chegou, carregando duas malas de roupa e uma mochila de livros, o garoto já foi reclamando (mesmo que telepaticamente) da iluminação, do cheiro e da limpeza da casa, mas assim que entrou pela primeira vez em seu novo quarto, seus olhos foram ofuscados pelo brilho de um dos quadros mais bonitos que ele já vira em toda sua vida.

Pregada na parede de seu quarto, a obra de 90 por 60 centímetros retratava uma paisagem com naturalidade espantosa. Dois vales verdes se encontravam ao fundo de uma praça e em primeiro plano, uma rua deserta, com pequenas casinhas solitárias ao redor. O menino, encantado com o quadro, ficava horas observando cada detalhe esculpido por uma mão, certamente, genial. Ia para a faculdade de manhã e quando voltava pra casa, passava pelo menos quinze minutos debruçado em frente à tela.

Certo dia, depois de mais uma manhã de estudos, o garoto foi observar o quadro, como fazia sempre, e percebeu na janela de uma das casinhas da rua, a figura de uma velha horrenda, que olhava diretamente para seus olhos. Ele conhecia cada centímetro daquela obra e tinha certeza que aquela janela sempre estivera vazia. Aquilo lhe pareceu assustador demais, até mesmo para ser compartilhado com seus tios. Guardou o segredo.
No dia seguinte a velha tinha sumido, mas um caminhão enorme e enferrujado aparecera estacionado no canto esquerdo da tela. Era assombroso. O garoto já tinha percebido que aquele não era um quadro normal. Apesar da riqueza de detalhes, algumas coisas mudavam mesmo de lugar, e outras apareciam do nada.

Com o passar dos dias aquelas transformações na obra viraram rotina. Ele chegava da faculdade e corria para o quarto, na esperança de ver um novo elemento. Viu uma árvore desaparecer no vale, um casal trocar beijos apaixonados na praça, uma das casas mudar de cor, viu um sabiá pousar no fio elétrico... E na quinta-feira não viu mais nada. Seus tios finalmente tinham comprado a cortina.

22 de abril de 2009