quinta-feira, 9 de julho de 2015

O Homem que Fazia Espelhos

Gio não lembra com que idade fez o seu primeiro espelho. Ainda tinha os olhos da mãe quando se viu refletido num deles. Era pequeno e levemente côncavo da metade pra esquerda, mas isso segundo os padrões da família; para o resto da gente era um espelho quadrado perfeitamente ajustado. E aquele era, se não o primeiro, um dos cinco primeiros que Gio finalizava sem a mãozona do pai. Os espelhos que viessem depois, perderiam esta falha. 

Às vezes Gio era surpreendido por paisagens refletidas. Enquanto lia no sofá, com os braços formando um triângulo, cabeça apoiada no punho e a boca semiaberta, de repente tinha sua atenção roubada por um menino idêntico, também no sofá, também lendo um livro, também prestes a ter sua atenção roubada por um menino idêntico até que o menino sumia e o pai dele ia andando porta afora com o espelhão debaixo dos braços. 

Um dia viu o pai amarrando um do tipo oval de quase três metros de altura na traseira da caminhonete. Esse aqui vai pro reitor, ele disse. E o menino, que mesmo sem entender, percebeu a importância, reparou melhor no espelho. Tinha molduras cor de ferro, que iam e vinham dos polos, se enroscando feito erva no vidro. O céu estava limpo, com exceção de uma única nuvem, e felpuda, que, por pura canalhice, o dito espelho refletia. Foi ali que Gio se decidiu espelheiro. Queria um dia chegar a fazer um gigante daqueles, com o refinamento de certos espelhos que, não satisfeitos em refletir a verdade, acrescentam a ela uma autenticidade inédita. Gio faria espelhos! Tão grandes ou maiores que esse! Seriam disputados aos tapas por reis, rainhas e reitores. E serão mais detalhados que o próprio olho humano! Não se esqueça, é de um espelho fantástico que estamos falando. 

Conforme o pai ia envelhecendo, o trabalho de Gio aumentava. Agora ele era responsável por encaixar os espelhos nas molduras, organizar os pedidos, fiscalizar a produção (às vezes ele mesmo fazia o espelho), realizar as entregas e... bom, também não era exatamente uma fábrica ultra equipada, com dois turnos de funcionários trabalhando ininterruptamente; era uma casinha miúda com dois homens fazendo vidro. O que um não fazia, o outro tinha que fazer. E o um, pelo que se conta, vinha fazendo cada vez menos. 

O pai de Gio morreu, como é dos pais de heróis morrerem, mas o moço a essa altura já andava ocupado demais com seus sonhos refletidos. Não era hora de parar a produção; não agora que as molduras vinham finalmente se ajustando às medidas do vidro. Gio já podia até ver uma barba silenciosa a se espalhar pelo queixo e seu maxilar era agora de homem. Gostava dos seus olhos claros, de como mudavam de cor dependendo da hora, o que lhe garantiria uma eternidade de entretenimento em frente ao espelho. Hoje está verde-água, hoje, esmeralda... e assim por diante. 

O olho dele estava azul quando aconteceu o acidente. Carregava cerca de cinco espelhos retangulares, separados por pedaços de papelão, bem ao lado da cabeça. E subia degrau por degrau de uma escadaria infinita, num prédio sujo e apertado. Com os vidros enormes lhe aporrinhando a visão, Gio achou que já tinha chegado no andar certo. Mas não, porque as linhas abaixo do espelho e as linhas acima da escada, todas se misturavam, escondendo o nível final. É difícil dizer se os espelhos caíram em Gio ou se Gio caiu nos espelhos. A única certeza é que os dois estiveram juntos, e por muitos degraus; tanto que os olhos de Gio, na hora, deixaram de ser azuis. 

Ele agora tinha a cara da morte. Metade de uma sobrancelha tinha sido completamente arrancada pelo vidro. De um olho ele não via nada. A boca se repartira em duas, uma querendo sugar a outra. As bochechas deram lugar a uma coleção de galhos e ranhuras vermelhas, rosas e roxas e verdes e pretas. Ele não conseguia segurar a saliva na boca, o que lhe dava esse aspecto empapado constante. 

Gio até tentou fazer novos espelhos, mas percebeu que, por maiores e mais límpidos, todos, assim que prontos, refletiam a mesma coisa, e que a vinha a ser ele próprio. Olhava para o reflexo e tinha como que um refluxo. Era grotesco, incompleto, babão. Aquela era a última paisagem que ele queria ver refletida num espelho que criara e, ao mesmo tempo, era impossível fugir dela. 

Resolveu compensar na moldura. 

Durante meses Gio criou os mais belos modelos de borda, mas, assim que instalava o espelho, o reflexo voltava a exibir a mesma paisagem de antes. Aquilo distraía, tirava a atenção; profanava o vidro de tal forma que os reflexos seguintes estariam invariavelmente amaldiçoados. Até que ele começou a fazer espelhos que distorciam a realidade. Descobriu que pequenas alterações na envergadura produziam efeitos ainda mais alterados. Um dia criou um espelho gigante que lhe transformava em um ser achatado. As cicatrizes do rosto passavam imperceptíveis diante de figura tão imprevisível. Se apaixonou pelo resultado daquelas brincadeiras de entortar. Começou a preencher a casa com espelhos que lhe deixavam obeso, magrelo, girafo, sapão... até que um dia se viu cercado por tantos, que não conseguiu mais encontrar a saída. Sua morte foi refletida de 32 maneiras diferentes.