quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sobremesa

Quando ouviu os gritos da irmã mais nova, vindos do quintal, Mariana largou as bonecas e seguiu confiante até a porta dos fundos. Era Jorginho da casa ao lado, que suspendia o vestido de Lúcia, ainda com sete anos. “A gente casou, agora tenho que te ver pelada”. “Mas era brincadeira, Jorginho... Eu não posso ficar pelada pra você. Isso é errado!”.

— Larga minha irmã agora, seu babaca!

Jorginho paralisou, assombrado. Lúcia se recompôs, envergonhada. Mariana avançou em direção ao muro, furiosa. Agarrou a camiseta do vizinho, mandou que sumisse se não quisesse perder o pinto. Ele sumiu.

— Obrigado, Mariana. Ele não sabe brincar direito, eu acho.

— O problema desse tipo de brincadeira, Lúcia, é que ninguém sabe realmente até onde é direito.

Ficaram as duas, pensativas, sentadas no chão do quintal. Mais tarde, quando os pais chegaram foram ter com eles o jantar. Só três biscoitos de chocolate pra sobremesa. Duas filhas.

— Mariana, a Lúcia pode ficar com um biscoito a mais? Ela é mais nova... — sugeriu o pai, entregando um biscoito para filha mais velha e dois para a mais nova.

— Claro que não! A gente parte no meio.

Mas Lúcia, percebendo o perigo iminente, já tinha enfiado os dois biscoitos na boca. Apesar de mal conseguir mastigá-los, eles estavam lá. Eram só dela. “Ih, tarde demais”. E Mariana sentiu o sangue borbulhar. A irmã com a boca cheia, quase rasgando, os farelos pulando para a mesa... Tarde demais? Molhou os lábios.

— Pai, a Lúcia ficou pelada pro Jorginho hoje à tarde. — anunciou, com frieza.

— Como assim, pelada? Que história é essa?

— Também não sei a história. Só sei que a Lúcia tava sem vestido e sem calcinha, se mostrando pro Jorginho, no quintal. Não queria contar, porque eles brincam toda tarde e eu só fui ver hoje.

— Não é verdade! — Lúcia tinha cuspido a massa marrom de chocolate na mesa para se explicar — Ele tentou tirar meu vestido, mas eu não deixei.

— Mas que tipo de brincadeira vocês estavam fazendo? — perguntou a mãe, horrorizada.

— Era como se fosse um casamento...

E Lúcia continuou se explicando como podia. Os pais não aceitariam, proibiriam a menina de sair de casa, iriam falar com os pais do Jorginho, seria o diabo. E Mariana calou-se, pegou o biscoito de chocolate que lhe coube, o único, e comeu da forma mais lenta e saborosa possível.

14 de agosto de 2010

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