Eram 11 da manhã, e Reginaldo se preparava para abrir o bar. Tinha passado as últimas duas horas varrendo o chão e limpando cada uma de suas mesas, na vã tentativa de melhorar o aspecto sebento do ambiente. Ao primeiro sinal de cansaço, o quase velho foi até o armário a agarrou uma garrafa de vodka. Adorava quando sobravam garrafas abertas da noite anterior. Era uma forma de enganar a culpa. Só estava continuando um serviço começado. Encheu um copinho de vidro até a boca e caminhou com ele pelo bar. Reginaldo e a vodka. Desses amores implacáveis. Gostava de beber na despensa, onde conseguiam ficar a sós. E a cada gole no copo de vidro, dava um pulo o seu coração. Caidinho pela vodka, o pobre homem.
— Reginaldo! — era a voz, feminina e incisiva, que ele menos queria ouvir naquele momento. Decidiu ignorar. Talvez ela fosse embora, apesar de já saber que não, ela ficaria e esmurraria o portão do bar até ser atendida. — Ô Reginaldo, sou eu, Carmem... — É, não tinha jeito. Encheu a boca num último e grande gole e largou o copo pela metade, na prateleira mais alta da despensa. Voltaria a ele, depois de se livrar da maçante.
Assim que ergueu o portão, Carmem avançou... Com o quadril empinado e os cabelos volumosos. Parecia mais gorda que da última vez que tinham se visto.
— A Maria, do salão, foi lá em casa me cobrar o corte do cabelo do Léo. Você não disse que ia pagar?
Reginaldo coçou os cabelos grisalhos, já imaginando o fim da conversa, com Carmem lhe chamando de irresponsável e jurando nunca mais deixar Léo sob os cuidados do pai.
— Eu ainda não paguei. — disse ele, com a voz mansa de quem pede perdão. — Naquele dia eu tava um pouco enrolado com as contas do bar. A situação não tá muito boa.
— Eu não sei como eu continuo acreditando nas suas lorotas... Já era pra eu ter acostumado. Você nunca paga nada pro seu filho! O menino vai fazer 12 anos e o que você já deu pra ele?
— Ah, Carmem... Não começa não! Eu pago o dentista do Léo.
— Paga o que?! Você leva ele no consultório do Paulão, que é seu amigo e nem diploma tem. Daqui a pouco o menino tá com o dente todo podre e vai ser mais uma despesa pra quem? Pra mim, claro. — era melhor não discutir. Reginaldo conhecia todos os argumentos de Carmem e sabia que, infelizmente, ela tinha razão.
— Me diz quanto foi o corte de cabelo, então...
— 10 reais.
— Tá bom. À noite eu peço pra alguém levar o dinheiro na sua casa...
— Nada disso! Dessa vez não tem conversa, Reginaldo... Eu quero esse dinheiro agora mesmo!
— Mas agora eu não tenho. Nem adianta insistir. — ele segurou o braço de Carmem e foi lhe conduzindo até a saída do bar. De repente ela estancou, apertou as bochechas do homem e arregalou o olho direito, enquanto sugava o mundo com as narinas.
— Você tava bebendo?
— Não... Não tava. Era só um restinho da vodka que...
— Eu não tô acreditando! 11 horas da manhã... — Reginaldo se calou — É por isso que você nunca tem dinheiro nesse bar. Bebe mais do que vende! Não é capaz de se controlar...
— Eu não tava bebendo, era só um restinho. Pra poder jogar a garrafa fora.
— Você lembra porque a gente se separou, Reginaldo? Você lembra o que acabou com o nosso casamento?
— Lembro. — disse ele, cabisbaixo.
— E você vai continuar bebendo? Hum? Perdeu a mulher, perdeu o filho... Tá esperando perder mais o que, pra parar com essa desgraça?
Reginaldo pensou em responder “a vida!” e encerrar o assunto. Estava cheio dos infinitos sermões que ouvia da ex-mulher, pelo mesmo motivo.
— Só você não percebe o buraco onde tá caindo, Reginaldo. Não tem fim. Você vai acabar perdendo esse bar também e não vai ter ninguém pra te socorrer. Eu tô te avisando agora, mas depois, quando a coisa apertar, não adianta bater lá em casa não. Porque eu (pausa) não (pausa) ajudo (pausa) bêbado.
— Tá bom, Carmem... Você quer o dinheiro? — Reginaldo foi até o balcão e abriu o caixa com violência — Toma! Tá aqui! Dez reais. Agora pára de encher o saco e sai do meu bar!
Carmem recebeu o dinheiro com desdém, mas não desviou o olhar de Reginaldo, com um pouco de pena e um tanto de ódio.
— Você não tem jeito mesmo... É um irresponsável!
— Exatamente! — disse Reginaldo, enquanto levava a ex pra fora. — Sou um irresponsável. Agora some!
Ele empurrou Carmem pela última vez e desceu o portão de ferro.
— E outra... — gritou ela, do lado de fora — Você nunca mais vai ficar com o Léo. Nem por um dia! Entendeu?
— Perfeitamente!
Dois segundos depois e Reginaldo estava chorando como um bebê, no chão do boteco. Triste por ter dado o único dinheiro que tinha pra comer e jurando nunca mais tocar em bebida alguma, a não ser pra servir a clientela.
Ele cumpriu sua promessa, até as nove da noite, quando o bar finalmente deixou de ser um deserto e recebeu seus primeiros e únicos clientes do dia. Quatro mulheres, na casa dos 20, desceram de um Gol prata e ocuparam uma das mesas do bar, enquanto gargalhavam com charme.
Reginaldo precisou esfregar os olhos. Ajeitou a postura, sorridente, e foi em direção à mesa, pra atender as damas.
— Boa noite.
— Oi... Traz pra gente uma rodada de... Cerveja, né? Pra começar. — a loira esperou que todas concordassem e finalizou — É... Uma rodada de cerveja, por favor.
— Brahma, Antártica ou Itaipava?
— Brahma.
Enquanto Reginaldo buscava os copos e as garrafas, no balcão, as quatro garotas ficaram na mesa, rindo e planejando o resto da noite. Aquela era só a primeira parada.
— Cadê o seu copo, tio? — perguntou uma ruiva de piercing nos lábios, quando Reginaldo chegou na mesa, trazendo a cerveja.
— O meu?
— É... Traz seu copo e senta aqui com a gente... O bar tá vazio.
— Não, não... Que isso? Eu tô trabalhando.
— Ah tio... — pediu a loira, com voz adocicada — A gente tá te convidando. Vem beber com a gente!?
Reginaldo achou aquilo tudo muito estranho, mas muito irresistível. Fitou cada uma das garotas com desconfiança, mas preferiu não contrariar as crianças. Pouco tempo depois, ele já estava completamente enturmado. Perdera as contas de quantos copos já tinha tomado e, as cervejas que ocupavam a mesa, agora davam espaço a velha e boa vodka que, já começava a lhe subir à cabeça.
— Eu quero que vocês saibam, que eu não sou de beber desse jeito... — se explicou, o dono do bar.
— Nós também não, tio. — respondeu uma ruiva, baixinha, e todas as outras caíram na gargalhada.
A loira tomou a palavra, estendendo a garrafa de vodka para Reginaldo.
— Agora, pra terminar a noite... A gente quer ver você matar essa diaba! — as garotas se ouriçaram.
— Não, gente... Essa garrafa ainda tá muito cheia. E se eu beber mais, não consigo fechar o caixa de hoje.
— Ah tio, deixa de conversa...
Um segundo de dúvida.
— Tudo bem, tudo bem... Vou tentar.
Reginaldo pegou a garrafa e começou a beber direto no gargalo. Sua garganta queimava, mas ele estava disposto a não parar até que terminasse. Percebendo a dificuldade do tio, a loira arrancou a garrafa de sua mão.
— Deixa que eu termino. — E, com uma força brutal, golpeou a cabeça de Reginaldo, que caiu, apagado, no chão do bar.
Foi abrir os olhos na manhã seguinte. O sangue já estava seco, na testa, e cacos de vidro minavam o bar. Aos poucos, Reginaldo se lembrava da noite anterior. Quando levantou, encontrou o bar vazio. O balcão vazio. O armário vazio. As quatro garotas tinham lhe roubado tudo. Todas as garrafas de vinho, os wiskies caros e as vodkas... Suas vodkas.
Desatinado, Reginaldo começou a andar pelo bar. Só lixo e papel. Sem garrafas, nem dinheiro. Já não conseguia segurar as lágrimas. Se sentia estúpido e ingênuo, enquanto ouvia a voz de Carmem lhe gritando aos ouvidos: “irresponsável!” “bêbado!”.
Foi quando ele percebeu um estranho reflexo, numa das prateleiras da despensa. O copo de vodka, que Carmem lhe impedira de terminar, continuava ali, no mesmo lugar. Em instantes sua tristeza cessou.
E com a euforia de um menino, Reginaldo segurou o copo e bebeu, com carinho, aquela meia dose de vodka. Não havia mais Carmem, nem as quatro ladras da noite anterior. Não havia mais culpa nem desespero. O mundo tinha parado um instante, e agora era só de Reginaldo. Reginaldo e sua amante.
6 de março de 2010
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