domingo, 22 de maio de 2011

Morte Agendada

“Só Deus sabe o quanto eu tentei ser feliz. Desde pequeno imaginava que minha vida seria diferente, que eu seria diferente. Sonhei pra mim qualquer coisa mais interessante que essa rotina que eu estava levando. Não culpo a Ludmila e até peço perdão por alguma lágrima que porventura venha a cair do seu rosto. A culpa é minha e da sucessão de desprazeres em que transformei meu dia-a-dia. A rotina me matou.
Fausto Corradine”

Sua caligrafia estava até razoável, levando em consideração o tanto que suas mãos tremiam. Sozinho no quarto, Fausto acabava de tomar a decisão mais importante de sua vida. Iria se matar. Programou tudo para a sexta-feira daquela semana. Conhecia um acesso ao telhado do prédio em que morava e era de lá que pularia, quatro dias depois de redigir sua despedida em uma folha de caderno.

Em outubro, Fausto completaria 44 anos, 20 deles trabalhando como funcionário público. Era casado com Ludmila, uma mulher mais velha que compartilhava com ele o gosto pelos números e o desprezo pelo governo. Os dois dividiam um apartamento grande e confortável, não deviam nada a ninguém e quase nunca se desentendiam. Sem filhos, eles não tinham muito o que conversar e passavam, às vezes, uma semana inteira sem se falar, envolvidos com seus afazeres individuais.

Fausto acordava antes das sete pra dar tempo de buscar pão fresco na padaria, tomar uma ducha e chegar ao trabalho com cinco minutos de antecedência. Sempre pontual, sempre impecável. Trabalhava até as seis da tarde sentado na frente de um computador, realizando tarefas que exigiam de sua capacidade intelectual o mesmo que se exige, talvez, em testes com macacos superdotados.

Quando chegava em casa, Fausto tomava banho, lia as correspondências, ouvia o Jornal Nacional enquanto comia lasanha de microondas e começava a trabalhar na sua tese de mestrado. Às 23h, já cansado e sonolento, ele desligava o computador e ia pra cama. Ali trocava raros murmúrios com Ludmila e desmaiava de cansaço.

Todo dia aquela programação se repetia. Cada vez mais cansativa, cada vez mais insuportável. Como era um homem que pensava no futuro, Fausto tinha uma pequena fortuna na poupança. Gastava só com o essencial e guardava o resto para a aposentadoria e, se necessário, alguma emergência. Como não tinha tempo, ele jamais aprendera a tocar bongô, o grande sonho de sua juventude. E como estava muito impaciente e cansado nestes últimos meses, sua tese de mestrado ficava cada vez pior. Nunca um assunto lhe pareceu tão desinteressante.

Fausto estava cercado por um muro que ele mesmo construíra. Preso no seu próprio perfeccionismo e ansiedade. E não via outra saída para aquilo tudo. Não suportaria fracassar no emprego ou perder o mestrado e não tinha coragem de assumir esse medo pra ninguém. Por isso, naquela segunda ele decidiu morrer. Terminaria seus dias de forma brilhante, caindo de um prédio de 15 andares ao pôr-do-sol de uma sexta-feira. Encontrariam seu bilhete dobrado no bolso, já sujo de sangue, e entenderiam o suicídio.

Com a morte agendada, Fausto não fora ao trabalho naquela semana. Desligou telefones, celulares e não quis responder às perguntas da esposa, surpresa com a mudança radical de comportamento. Ao invés disso, ele se matriculou em uma aula de bongô. Tinha pressa. Até sexta-feira teria que saber pelo menos um acompanhamento. Realizaria finalmente o sonho tão adiado.

E já que iria morrer, Fausto não via sentido em guardar mais nenhum centavo na poupança. Com o dinheiro sacado ele pagou os mais caros restaurantes da cidade, comprou jóias para Ludmila e fez uma viagem de um dia ao Espírito Santo. Foi sozinho para aproveitar melhor, nem que fosse apenas uma manhã de praia.

Assim que tirou o tênis e pisou na areia, Fausto sentiu a leveza que procurava há 44 anos. Olhou para o mar, esverdeado, chicoteando o litoral e agradeceu aos céus pela beleza da vida. E chorou, por descobrir tão tarde como é bom ser livre.

Quando voltou de viagem, faltava apenas um dia para seu suicídio. Neste dia Fausto passou a olhar as pessoas com uma generosidade incomum. Talvez, por estar tão próximo da morte, se sentia mais puro, mais espiritualizado. Saiu com a bolsa cheia de dinheiro e distribui notas de cinquenta entre todos os meninos de rua que encontrou pelo bairro.

Quando voltou pra casa, foi abordado por uma Ludmila esbaforida:

— Fausto! Seu chefe já me ligou quinhentas vezes querendo saber o que aconteceu com você. Por que você não foi pro trabalho nenhum dia essa semana?

Fausto soltou uma gargalhada.

— E o que você disse?

— Ah, eu inventei uma mentira qualquer... Disse que você estava doente, gripado. Na verdade, nem eu sei o motivo!

— Não tem que saber.

— Como não tem que saber? Um dia você me chega com um monte de jóias caras, no outro você viaja pra sei lá onde, fazer sei lá o que! Fausto, você não tá se metendo em nenhuma enrascada não, né?

Ele continuou sorrindo, chegou perto de Ludmila, o mais perto que conseguiu, estava a poucos centímetros de seus olhos verdes e admirados, quando perguntou:

— Você acredita no meu amor?

— Que história é essa agora?

— Não é história. É uma pergunta. Só quero que você responda com sinceridade: Você acredita que eu te amo?

Ludmila desviou o olhar e se afastou de Fausto com um passo vacilante.

— Sinceramente... Eu nunca acreditei no seu amor. Nunca. — ela respirou fundo, parecia nervosa — Mas olhando agora para os seus olhos, que estão tão diferentes, tão brilhantes, é impossível negar esse sentimento. É estranho, mas hoje você me ama.

Fausto se aproximou novamente de Ludmila e segurou suas mãos.

— Não só hoje, mas a partir de hoje.

E eles se beijaram e se amaram a noite toda, como nuca haviam feito antes. E Fausto dormiu até o meio-dia, porque seu único compromisso naquela sexta-feira só estava marcado para o pôr-do-sol.

Quando começou a entardecer, Fausto foi ficando melancólico. Sentia um pouco de medo também. Será que morrer dói? Será que ele sentiria o impacto do seu corpo contra o concreto ou morreria durante a queda, quando seu coração fundiria por bater tão rápido?

Às 17h30, Fausto pegou o bilhete de despedida que tinha guardado na gaveta e o colocou no bolso. Tomou o cuidado de não ser visto por ninguém e subiu para o telhado do prédio, usando a escadinha da zeladoria. Ludmila só chegaria do trabalho às sete horas. Até lá o sol já teria se posto e seu corpo já estaria frio.

A vista, de cima do prédio, era encantadora. O céu estava vermelho, ventava pouco. Fausto foi caminhando, com lágrimas no rosto, até uma das extremidades do prédio. A altura era grande e ele evitava olhar para baixo para não vacilar na decisão. Continuou avançando até ficar com as pontas dos pés ao ar livre. A um passo do fim de sua vida.

Foi aí que Fausto pensou nos seus últimos dias de vida. Lembrou de como aqueles momentos tinham sido agradáveis. Como, sem querer, ele tinha descoberto a fórmula da felicidade. Lembrou do som do bongô, que finalmente aprendera a tocar, do gosto de água salgada do mar do Espírito Santo e do cheiro da pele de Ludmila, depois de uma noite de prazer.

De repente tudo estava muito claro. Ele tinha se livrado daquela rotina torturante que há uma semana lhe fazia tão mal e agora poderia recomeçar a viver como sempre sonhou. Estava ansioso por outros momentos como aqueles. Era isso! Não precisaria morrer. Não iria mais morrer.

Fausto já estava dando a meia volta em direção à terra firme quando tropeçou no cadarço. Terminou seus dias de forma brilhante, caindo de um prédio de 15 andares ao pôr-do-sol de uma sexta-feira.

25 de julho de 2009

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