sexta-feira, 25 de maio de 2012

Fase de Latência

A contagem estava começando e tudo o que se ouvia eram passos pequenos, apressados e errantes. Cada criança seguia até seu abrigo com desespero e emoção. Tinham trinta segundos. E a cada número cantado, menos gente se via. Às vezes uma perna, logo mais nem isso. Até que a vizinhança fosse puro esconderijo. As árvores, carros, becos e moitas guardavam seus meninos com compaixão. Eram todos cúmplices de um crime invisível. Silêncio. Silêncio.

Luana tentava prender a respiração entre os arbustos. Sua posição era desconfortável e os galhos lhe rasgavam a bondade pelas costas. Devia ter escolhido outro lugar pra se esconder. De repente Dudu aparece, esbaforido, com cara de socorro.

— Sai, Dudu... Eu já tô aqui. — sussurrou.

— Não dá mais tempo, ele já parou de contar. Vou ter que caber.

Vou ter que caber... Luana achou graça do menino, querendo se enfiar onde, obviamente, não havia espaço. Mas pensou que se não admitisse Dudu, estaria cometendo algum tipo de pecado. Como se fosse dona de um hospital e negasse atendimento a um homem moribundo. Dudu era seu moribundo.

— Que saco... Não tá vendo que não cabe?

— Ah, Luana... Chega pra lá, empurra esse galho. Isso. Pronto.

Os dois conseguiram se espremer entre as árvores. Agora eram obrigados a ficar numa posição terrivelmente vulnerável. Seus pequenos corpos de dez anos estavam amontoados no interior da moita e os galhos e folhas funcionavam como uma cabana escura e volumosa. Lá fora, o menino gordinho começava a procurar.

Os dois ficaram em silêncio. Um silêncio tão grande que chegava a assustar. Cada movimento era um escândalo. Os gravetos não rangiam, berravam. O chão era uma sinfonia de pequenos e tremendos barulhos. Luana estava incomodada. Precisava respirar, mudar de posição, espantar uma formiga, mas Dudu parecia um robô, vidrado, acompanhando o gordinho com a atenção de um predador. Por um momento pensou que brincar de esconde-esconde era mesmo coisa de menino. Eles eram mais rápidos, silenciosos e levavam a brincadeira mais a sério. Ela, se estivesse sozinha, por certo já teria perdido. Não levava muita coisa a sério. Mas Dudu era um guerreiro. Desses impávidos.

Aos poucos Luana percebeu o que lhe ocorria e com espanto se deu conta do absurdo que era estar espremida com um garoto no meio do mato. Pra logo mais, não se espantar. E até gostar. E achar estranho. Abusado. Tinha dez anos e estava espremida com um menino no meio do mato. O horror. Mas Dudu parecia concentrado, só tinha olhos pro jogo. Ele jamais perceberia o que estava acontecendo.

Viu que seu short terminava no meio das coxas, a bermuda dele também, de um jeito que, mais cedo ou mais tarde, suas pernas se encostariam. Acabaram se encostando como um arrepio, mas ele parecia não se dar conta. Estava entretido no jogo. E Luana adorou a sensação da panturrilha dele contra a dela. Quente e áspera, com uma cicatriz do futebol bordando as beiradas. Uma pressionava a outra. Cada vez mais forte.

Dudu tinha o cabelo anelado, mas de um jeito que só é possível se ter aos dez anos de idade, quando os hormônios da puberdade ainda não estragaram a maciez da vida. Seus olhos eram escuros, mas não chegavam a ser pretos. E ele todo era bastante bonito, o que incomodava Luana há dias. Porque ele era bonito, mas parecia não fazer ideia disso. E quanto menos fazia ideia, mais bonito era. E às vezes sorria de um jeito pateta e ficava incrivelmente adorável. Às vezes se irritava com alguém e chegava a esbravejar, mas tinha a língua presa, o que tornava seu discurso engraçado na maioria das vezes. E Luana fingia nada ver por baixo de sua franja marrom. Suas observações e impressões eram silenciosas, como se, admitindo sua admiração por um garoto, tivesse que admitir também que estava crescendo.

Teve seus devaneios interrompidos pelo cotovelo de Dudu, que fincava sua costela.

— Dudu, seu cotovelo tá me machucan...

A mão dele veio tapar sua boca. O gordinho estava a poucos metros. Caminhava lentamente, com um olhar de águia. Os dois prenderam a respiração. Qualquer barulho seria fatal. E Luana pensou que seu coração colocaria tudo a perder. Batia rápido demais, forte demais, fundo demais. O que significava aquilo tudo? Eram os dedos de Dudu que agora estavam em sua boca? Tapando-lhe os lábios? Fazendo tremer? Aos poucos, toda sua sensibilidade fora transferida para a ponta da boca e ela já podia sentir cada risco da pequena mão de Dudu. Sentia o cheiro de menino nos seus dedos e pensou que fosse desmaiar de embriaguez. Era refém. E precisava esperar que o gordinho se afastasse para tentar um acordo pacífico.

— Ufa. Foi por pouco.

Dudu tirou a mão da boca de Luana e tentou ficar numa posição mais confortável. Foi quando ela percebeu, com pavor, uma mancha de sangue nas costas do menino. Enorme, como uma flor. Teve vontade de chorar, mas se controlou. Era preciso falar baixo.

— Sua blusa tá cheia de sangue!

— Quê?

Ele também pareceu assustado. Colocou a mão nas costas para se certificar e voltou com os dedos vermelhos. Sem pensar duas vezes, Dudu tirou a camiseta. Agora dava pra ver o corte. Transversal e reto. E fundo.

— Acho que esbarrei em alguma coisa afiada quando entrei aqui... — ele parecia tranquilo, mas suas costas sangravam. Lenta e continuamente.

Luana não conseguia falar. Sentia-se atordoada e confusa. Olhava para Dudu e só conseguia enxergar seu corpo de criança que, naquele momento, parecia tão errado e desejável. Sua pele clara, o pequeno peitoral infantil que era a promessa de um adulto saudável e forte, o corte nas costas. Tudo vermelho, sujo, suado. E alguma coisa entre suas pernas lhe atraia profundamente. Como um ímã.

— Acho que vou ter que me entregar. Ir pra casa... — disse ele, tristonho pelo fim da brincadeira.

Luana não respondeu. E atendendo a um impulso animalesco e violento, virou Dudu de costas e foi estancar seu sangue. Com a boca. Ele deixou, sem entender muito bem que espécie de técnica era aquela. E ela sugava cada vez mais forte. Sentia o gosto do sangue na boca. Abraçava todo o menino por trás e se sentia vampiresca, mas não podia parar. Teve tonturas de prazer, desfaleceu de tesão, revirou os olhos, conheceu a morte e voltou saciada. Tirou os lábios de suas costas.

— Valeu, mas acho que preciso mesmo ir embora. — Não havia constrangimento entre os dois. Ele sorriu, como se agradecesse o serviço de uma enfermeira. E ela continuou calada. A boca manchada de sangue. Diria pra mãe que comera amoras do pé.

E Dudu se entregou. Foi pra casa carregando a camiseta na mão esquerda e um segredo na outra. Ninguém saberia que ele só havia aparecido ali, no esconderijo apertado, porque momentos antes vira Luana entrando e queria ficar perto dela. E que passara a brincadeira inteira com o coração aos pulos, sentindo seu perfume, reparando em sua pele, sua franja, seus olhos, e que quis perder a vida quando ela beijou suas costas feridas. Mas Luana parecia sempre concentrada, só tinha olhos pro jogo. Ela jamais perceberia o que estava acontecendo.