segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Homem na Piscina

Acordou com a boca azeda, o estômago girando e uma insistente falta de ar. Sentiu o corpo dolorido e as bochechas dormentes pelo contato prolongado com o chão da cozinha. Suas ressacas normalmente não eram assim e, por alguns segundos, Júlio foi tomado por aquele pânico infantil de quem acorda sem saber onde está. Aquela mesma sensação das tardes de domingo, quando cochilava em frente à TV e despertava horas depois, encontrando a casa vazia.

Aos poucos ele começou a identificar elementos de um cenário conhecido: a geladeira antiga, com pequenas ferrugens nas laterais, o fogão azul, onde sua avó fritava bolinhos de chuva, a bancada de mármore, que separa a cozinha da sala de estar e o crucifixo de madeira, com um Cristo retorcido de dor. Ele estava no casarão onde costumava passar os fins de semana; a 40 minutos do centro da cidade.

Depois do AVC de vovó, que culminou na terrível perda dos bolinhos de chuva, o casarão da família passou a ser de domínio público. Nenhum dos quatro filhos queria arcar com as despesas para mantê-la funcionando, mas também não podiam vendê-la. Pelo menos enquanto vovó ainda estava viva. Então os netos aproveitavam como podiam. O lugar estava abandonado, caindo aos pedaços, mas tinha piscina e churrasqueira, o que garantia aos jovens um mínimo de cerveja, sexo e privacidade.

E Júlio, que sempre havia usado a casa sem maiores problemas, dessa vez percebia tudo um tanto longínquo. Ele se lembra de ter chegado de carro na sexta-feira e ligado pra um ou dois amigos, chamado pra beber, mas nada além disso. O chão permanecia cheio de garrafas de vodca, comprimidos e o tempo nublado não ajudava a responder às perguntas. Que horas são?

Ele tentou levantar, mas repentinamente sua vista falhou, o som desapareceu e ele sentiu que estava partindo. E precisava voltar, antes que fosse tarde demais. Sem forças, desabou, espalmando uma poça de sangue. Esperou sentado por alguns minutos até recuperar o equilíbrio e correu os olhos pela sala de estar. Manchas de sangue. Percebeu também uma faca, dessas Tramontinas, de serra, e achou tudo um tanto novelesco. Quem mataria com uma faca de serra?

O rastro levava à parte externa da casa. Ele caminhou lentamente até a churrasqueira, que na verdade era só uma mesa de pedra e quatro bancos em ruína, e percebeu que a piscina, antes esverdeada de musgo, exibia agora uma coloração púrpura. Na superfície, de bruços, um homem boiava. Júlio virou o rosto bruscamente, como se quisesse convencer alguém de que não vira nada, mas era inútil. Tinha um corpo na piscina.

E ele teria gritado, se houvesse alguma possibilidade de ser ouvido. Em vez disso, preferiu entrar o mais rápido possível no casarão. Tinha medo de ficar ali fora, exposto, porque não entendia o que tudo aquilo significava. As drogas, o álcool, o homem na piscina... Alguma coisa tinha dado muito errado naquele fim de semana.

Quando entrou, Júlio deu com sua avó de pé na cozinha, mexendo uma massa na vasilha. Ela estava com os cabelos brancos presos num coque, vestido florido e as bochechas rosadas de saúde. Nada de cadeira de rodas. Nada de AVC. Tudo estava exatamente igual ao verão de 98.

— Vó?

— Oi, querido...

Júlio estava sem reação. Queria abraçá-la e dizer o quanto a amava e sentia falta daquela voz, daquele perfume e daqueles bolinhos de chuva, mas isso lhe pareceu traição para com sua verdadeira avó. A das mãos atrofiadas e cadeira de rodas. A senil.

— Quando a senhora chegou?

— Como assim, Júlio? Essa é a minha casa... — e ela disse isso com tanta convicção que ele achou melhor não retrucar — O que você tem, meu filho? Que cara é essa?

— A senhora viu a piscina?

— Vi. — ela ficou na ponta dos pés, como se quisesse enxergar a janela — Tem um homem morto.

— Fui eu, vó? — sentiu a voz embargar de arrependimento — Eu matei esse homem?

Ela largou a vasilha em cima da bancada, caminhou até o neto e afastou sua franja do olho, com misericórdia.

— Provavelmente...

Desesperado ele levava as mãos ao rosto, tentando identificar quando foi que tinha deixado esses impulsos psicóticos tomarem conta da sua alma. E repetia incansavelmente “o que foi que eu fiz?”, “o que foi que eu fiz?”, enquanto girava o corpo de um lado para o outro sem encontrar uma resposta.

— E agora? Fujo? Ligo pra polícia? Enterro o homem no quintal e finjo que nada aconteceu?

— Primeiro você precisa saber o que aconteceu...

— Eu não sei. — ele não conseguia segurar as lágrimas — Eu juro que não sei o que aconteceu, vó. Simplesmente acordei e encontrei a casa nesse estado. E vi o sangue... Mas eu não seria capaz de fazer uma coisa dessas. De matar uma pessoa. Tenho certeza disso. Eu não sei como se faz.

— Matar não é o tipo de coisa que se aprende. A vida é muito mais frágil do que parece. Não vê o meu caso? Bastou uma veia entupir e pluft! Tudo se acabou. Não sei mais falar, andar, cozinhar... Ninguém pode prever essas desgraças.

— Mas seu caso é diferente. Ninguém enfiou uma faca na senhora.

— Isso é só um detalhe.

Júlio olhou para o crucifixo na parede e achou que deveria pedir perdão. Ajoelhou, com o rosto vermelho, e mostrou as lágrimas pra Cristo. Pra que Ele visse o arrependimento escorrendo e fosse misericordioso. Enquanto ele orava, sua avó deixou a cozinha e veio sentar ao seu lado.

— Deita aqui no colo da vó... — não era muito digno um homem de 18 anos deitar no colo de sua avó, mas ele estava cansado demais para recusar o cafuné. E ficaram os dois ali, sentados embaixo do crucifixo, de frente pra parede, de costas pro defunto. De um lado Jesus Cristo, do outro um homicídio.

— Lembro que seu cabelo era todo cacheadinho quando você era pequeno. Era a coisa mais linda, seus cachinhos castanhos. — pausa longa e desconcertante — Pra onde eles foram? — ela passava a mão delicada pelo cabelo do neto, hora ou outra limpando uma lágrima. De repente mudou o tom. — Pra que tudo isso, Júlio? Todo esse álcool, esses comprimidos...

— Não tenho uma justificativa boa o bastante pra isso. Na verdade, eu só queria distrair a razão. Fugir. Porque a realidade era desconfortável demais pra mim.

— E conseguiu?

— Algumas vezes. Mas no dia seguinte, pela manhã, ela sempre voltava. A realidade. E quase sempre acompanhada de vergonha e culpa.

— Você era um menino brilhante. Inteligentíssimo! E lindo! Ninguém era capaz de encontrar um defeito.

— Acho que eu não soube crescer. Só isso. Eu sempre tive alguma coisa aqui dentro, alguma coisa muito grande, como um berro. Mas sempre tapavam minha boca. E eu nunca consegui realmente berrar... Sei lá. Segurar um grito assim, tão alto, deve fazer mal pro fígado.

— Você tem alma de poeta, meu filho. Sempre teve. E gente assim não consegue viver muito tempo. A não ser que se esconda e vá se abafando. De qualquer outro jeito, a tendência é sempre essa. O desamparo. Porque esse não é um mundo pra vocês.

— Mas eu sempre tive tudo. Nunca precisei ficar sozinho.

— Não era suficiente. E não culpe sua mãe... As pessoas não sabem como amparar alguém assim. Tenho certeza que ela fez o possível.

— Eu sei. Ela foi maravilhosa, sempre. Eu é que fiz tudo errado... Fui longe demais.

— É muito difícil saber a hora de parar.

— Mas e agora? E o homem na piscina? O que eu faço com ele?

— Deixa que descanse.

Júlio levantou e limpou o rosto na camiseta. Esperou sua avó ficar de pé e lhe deu um último abraço.

— Obrigado por entender.

Caminhou até a piscina mais uma vez e ficou observando o corpo flutuar, com toda a leveza do mundo. E quis ver o rosto do homem, pra saber como são os olhos de alguém que já não está.

Sentiu a água gelada tocando a ponta dos dedos, alcançou a camisa do morto e puxou com força até conseguir tirar o corpo inteiro da água. Percebeu no pulso, dois cortes profundos. A água rosada criou uma poça e Júlio virou o pescoço do homem com carinho. Primeiro pensou estar vendo seu pai ou irmão mais velho, mas logo reconheceu ali seu próprio rosto. Era ele o homem na piscina. Sempre foi. E Júlio se sentiu aliviado. E se achou bonito, com os olhos fechados.

Dentro da casa, os bolinhos de chuva ficavam prontos.

4 comentários:

Anônimo disse...

Isso dava um filme muito "moda-foca".

Anônimo disse...

Jah estava ansiosa para ver outra historia no blog...gosto muito delas. Não demore pra postar outra..:)
by: Fernanda Cardoso

Luciana Pacheco disse...

"—Obrigado por entender." Dizia, postumamente,o neto.O que há pra entender?
Não se desprendeu do que mais fugia,não deixou a razão se distrair...(linda frase, aliás.Linda!!!!!)
Se, talvez, o narrador lhe reservasse no enrendo o estado em que o sentir ceda ao pensar, a sentença seguinte poderia soar como uma constante e não se abafariam gritos:" Sentiu a água gelada tocando a ponta dos dedos"
A relação com a piscina poderia ser outra, como experimentar os diversos tons de azul, enquanto a razão certeira asseguraria ser, sem dúvida, apenas um azul.
Só com a razão distraída, a leitura segue nos diferentes tempos do texto, dando um nó na linearidade,enforcando a verossimilhança, possibilitando n leituras. Afinal, qual o estado da avó cadavérica, para além do previsível limiar entre dois estados?
Afastar a previsibilidade é também afastar a pretensa razão, que aqui se dilui. A previsibilidade que caracteriza os poetas como os caçadores de sentido, enquanto seguem incompreendidos.
É justamente por ignorar a compreensão, fugindo do sentido, sobretudo o único, que talvez esse neto tenha tido, quem sabe, a alma de poeta! É preciso se achar bonito: "E se achou bonito, com os olhos fechados."

Lindo conto, best.

sablofe disse...

Tô orgulhosa.