sábado, 6 de julho de 2013

Uma Questão de Retina

Ela estava de pé, em frente ao assento preferencial do metrô, enquanto ele dividia o mesmo com uma senhora de obesidade mais ou menos mórbida. Ela reparou nele. E reparou que ele era algo muito próximo de lindo. E que tinha os olhos marrons. E que tinha o rosto levemente inclinado pra ela, como um convite.

Começou a se exibir com uma naturalidade perversa. Mudou a posição das pernas, se inclinou um pouco pra frente, fechou os dedos em torno do mastro de metal e sorriu. E ele não viu. Parecia extremamente distraído com alguma coisa que dançava no ar entre ela e o resto do trem. A necessidade de ser vista crescia. E a conexão existia, ela podia sentir. Era só uma questão de retina.

Usou de uma estratégia mais ousada e abriu o primeiro botão da camisa como que tomada por um calor repentino. Ela era toda perigo. Sentia os solavancos carinhosos dos trilhos percorrerem suas pernas, subirem pela virilha e se instalarem exatamente ali. No coração. Mas o contato visual continuava inexistindo.

A gorda acordou do seu cochilo, limpou a boca molhada, esfregou os olhos remelentos e desceu na estação seguinte, deixando o assento vazio. O jovem de olhos marrons continuava imóvel, olhando pro mesmo lugar que não era ela.

Foi quando, cheia de coragem e ardor, ela se aproximou. E quanto mais perto chegava, mais clara se tornava essa piada trágica do destino. De que os olhos dele, além de marrons, eram também opacos. E mortos. E que ela poderia abrir, um por um, todos os doze botões da camisa, que ele continuaria sem ver. A bengala ali, repousada ao lado do banco, onde sempre esteve.

Sentindo-se culpada e triste, ela sentou do seu lado. Mais por preguiça que por interesse. E, contrariando suas expectativas, ele virou o rosto pra ela. Os olhos estavam na reta, mas continuavam sem acertar o alvo. Alguma coisa de indescritível existia ali. Ela podia sentir, ele também.

Tocaram na mão um do outro. Primeiro de forma carinhosa, como um cumprimento; depois de forma apaixonada, como um terremoto. E ela estava chorando e sorrindo quando ele começou a tocar seu rosto com a mão esquerda, como alguém que procura um interruptor inexistente. A mão direita ele enfiou no bolso e trouxe de lá uma adaga prateada. Fez um movimento profundo, letárgico e começou a furar um dos olhos de sua nova amante. E ela permitiu, com uma resignação admirável. Sentia o sangue escorrer pelas bochechas, mas não conseguia sentir dor. Nem medo. E depois ele furou o segundo com o mesmo amor com que furara o primeiro.

E só então ela percebeu que ele tinha visto o sorriso, o decote e tudo o mais. Que durante toda a viagem, era ela quem estava cega.

E agora eles podiam se ver.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

As Razões Pelas Quais Vou Ficar Sozinha

Já eram três da tarde quando Mateus chegou com seus passos largos, pedindo desculpas pelo atraso e desarmando o mundo com seu sorriso bobo. Tinha a aparência impecável, apesar do sol e do ônibus. Não suava, não tinha espinhas e nunca parecia desconfortável. Era uma divindade estranha, sempre flutuando ao redor da humanidade sem muita pressa ou interesse por qualquer coisa que não fosse ele próprio. Encontrou Débora sentada no chão, embaixo da árvore preferida, visivelmente desapontada.

– Eu tava na casa do tio Cláudio até agora, acredita? O almoço só foi sair uma e meia. Foi mal...

Tudo bem, mas ela teve que começar sem você.

Débora estava de preto e bebia um vinho barato direto do gargalo. Tinha uns olhos redondos e ofensivos. Cabelos vermelhos, do tipo fino e macio, e era magra e bonita de um jeito quase imperceptível. Eles tinham terminado há dois anos e desde então vinham tentando criar uma relação amistosa. 18 anos de idade, vai... Eles ainda podiam insistir no erro.

Mateus era um espírito livre, tragicamente perdido. Mantinha os cabelos negros e lisos perfeitamente alinhados acima dos olhos. A pele branca e a boca vermelha davam esse ar vampiresco que encantava e causava repulsa na mesma medida. Ele também não entendia porque continuavam marcando esses encontros.

– Eu tava aqui pensando nas razões pelas quais vou ficar sozinha.

– Ah. – Mateus virou os olhos, se acomodou, acendeu um cigarro.

– É sério. Eu cheguei a umas conclusões. Por exemplo: eu me apaixono. Acho que é a principal razão.

– Mas Débora... Não tinha outro assunto? Eu não quero discutir isso com você de novo. Não vou ficar aqui enumerando suas qualidades e tentando te convencer do tanto que você é maravilhosa...

– Não precisa. Eu conheço minhas qualidades. Não tô dando uma de gótica melancólica que bebe vinho às três da tarde e acha que a vida não vale a pena. Só tô dizendo que quem não se apaixona, não sofre. Inclusive parabéns.

– Oi?

– Parabéns por conseguir nunca se apaixonar por ninguém.

– Ah, obrigado.

E eles fizeram um silêncio. Mateus soltava a fumaça cada vez mais pesada de rancor e Débora começava a sentir o efeito do álcool em seus olhos molhados.

– Eu não sou interessante. Por que alguém ficaria comigo? Sou completamente normal. Previsível. Morna, como um vômito. Então eu poderia até beijar na boca de vez em quando, porque meninas normais beijam na boca de vez em quando, mas nunca conseguiria alguém suficientemente bom que se interessasse em ficar comigo pra sempre. Eu mato as pessoas de tédio, Mateus. Olha pra você... Não tem cinco minutos que chegou e já tá babando de emoção.

Mateus continuava calado, fumando o espanto pela moça ruiva e inocente que agora parecia queimar sobre o fogo de si mesma.

– O que mais? Eu tenho ciúmes. Isso mesmo. Tenho. Desculpa. Não posso fazer nada se, pra mim, amar é também ter medo de perder. Nunca vi sentido em gente sem ciúmes. E penso em casamento, porque também não vejo sentido em amar e ficar longe. Não entendo quem ama, mas não quer uma proximidade doentia. Não entendo quem ama e não quer apertar, sufocar, engolir o outro.

Débora estava com as bochechas vermelhas de calor, mas o céu começava a escurecer. Eram três e meia da tarde e a lua já aparecia. Ela reparou no fenômeno, mas achou tolo interromper um assunto sério daquele para comentar que o sol estava se pondo às três e meia da tarde.

– Mas na verdade – ela mudou o tom de repente, como se toda a sua doçura tivesse ido embora com o sol. Pegou o cigarro recém-aceso da boca do ex-namorado, deu um trago e continuou a falar, mas dessa vez com violência – eu percebi que nada disso era culpa minha. Que o problema não era meu. Nunca foi. Você era o problema. Você estava errado. Você que, por algum trauma ou deficiência, nunca conseguiu amar alguém.

– Você tá sendo dramática, absurda. Um pouco ridícula até.

– Talvez. Mas eu sou dramática, eu sou ridícula... Cansei de tentar dizer as coisas de um jeito mais natural, mais leve, sem machucar ninguém. Porque eu tenho aqui, Mateus, trezentas toneladas de puro absurdo. Você não faz ideia de como é difícil tentar me controlar do seu lado pra não parecer cafona, pra te manter entretido, pra não te assustar. E, olha, sinceramente... eu cansei. Agora você que aguente todo esse peso. Você tem braços fortes, mocinho.

E Mateus, sempre tão cheio de argumentos, tão racional, lógico e óbvio, ficava calado, porque percebeu o perigo de uma Débora cansada. Porque percebeu que esse momento era dela. Que ele nem deveria estar ali e não faria diferença argumentar. Ela sabia que ele estava certo, ele sabia que ela era louca e isso não mudava em nada a certeza ou a loucura.

A moça continuava seu discurso, engolindo a fumaça e falando ao mesmo tempo, desafiando a lógica, prestes a chorar.

– E, por favor, me explica o porquê dessa insensibilidade. O porquê desse medo. Eu juro que não entendo. Não sei como alguém consegue ser tão frio e sem carinho. Tenho até pena, sabia? Porque alguém assim deve sofrer bastante. Como é manter todo mundo a quilômetros de distância? Como foi namorar comigo por anos e não se permitir nenhum tipo de demonstração sincera de afeto? Valeu a pena? Você tá intacto, tá lindo... É isso que importa, né?

Mateus não olhava pra ex-namorada. E ela chegou a pensar que ele estava arrependido, que iria lhe pedir desculpas, com os olhos cheios de lágrimas, e lhe beijaria a boca. E lhe tiraria a roupa. E transariam na beira do lago como jamais transaram. Em vez disso, ele observava um besouro perneta e suas tentativas desesperadas de ficar de cabeça pra cima.

– Você. Sempre você. Você e seu egoísmo. Você e sua família perfeita e seus almoços de família perfeita que sempre atrasam tudo. Você e sua mania de grandeza. E sua facilidade de convencer todo mundo que é bem melhor, mais talentoso e mais legal do que realmente é. Deixa eu te falar, Mateus: você não é grande coisa. Você tem medo! Você é uma criança assustada, desesperada por amor. Você quer ser amado mais que qualquer coisa e, por isso mesmo, não consegue amar.

Duas ou três lágrimas já estavam rolando no rosto de Débora, Mateus continuava olhando pra baixo. Ela esticou o tronco até ficar a poucos centímetros dele:

– Olha pra mim!

Ele não olha. Não tem coragem. Ela segura o rosto dele com as duas mãos, o obrigando.

– Olha pra mim!

E chora. Chora copiosamente. Chora lindamente. Se derrama inteira pra ele. Ele assiste tudo, como um filme ruim. Desconforto. Culpa. E Débora ali, a poucos centímetros, executando finalmente sua vingança, sua tortura.

Nem quatro da tarde e o céu já estava completamente escuro. Os postes ainda apagados, porque estão programados pra acender às seis e também porque o governo não fazia ideia de que justo naquele dia o sol ia se por às três da tarde. E porque o mundo tava acabando e ninguém se deu conta. Só Débora.

– Fala alguma coisa! Por favor! Tenta se explicar. Diz que eu tô viajando. Não me deixa acreditando que tudo o que eu falei era verdade. Faz como você sempre fez. Inverta tudo, transforme tudo, mas me deixa confortável com uma mentira sincera. Por favor. Fala alguma coisa!

E dessa vez ele não falou. Não houve conforto. Nem mentiras sinceras. Nem qualquer outra referência à MPB. E Débora virou o que restava da garrafa de vinho, respirou fundo, abriu a bolsa e tirou de lá um revólver. Como quem tira um espelho.

– Que isso, Débora? Onde você arrumou essa arma?

Sem jeito, mas também sem tremer, ela arma o tambor e oferece o revólver para Mateus.

– Eu já tô morta. O que você vai fazer agora é uma espécie de eutanásia.

Mateus permanece incrédulo, olhando da arma pra Débora, esquecendo até mesmo do besouro perneta. E ela agora parece linda com aquele revólver na mão. Tem os cabelos tão ruivos e é tão segura de si, perigosa e dramática, que ele jamais ousaria chamar de ridícula.

Ela coloca a arma na mão de Mateus.

– Vai. Isso não é um assassinato. É um suicídio assistido. É que eu realmente gosto do jeito que você me machuca.

E ele, meio sem pensar, meio pensando demais e reconhecendo o absurdo de tudo e a importância de nada, coloca a arma na cabeça de Débora. Mas coloca com um carinho inédito. Se olham pela última vez. E naquela fração de segundo se perdoam por tudo. Pelo ciúme, pelo egoísmo, pelo medo e pela tortura. Ela fecha os olhos com um prazer pornográfico. Ele aperta o gatilho com o mesmo prazer.

O barulho do tiro faz outros dois besouros ficarem de cabeça pra baixo.


Débora só foi encontrada horas mais tarde, com o revólver na mão direita e a cabeça estourada. E Mateus nunca chegou. O almoço atrasou tanto que ele desistiu do encontro.