segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Amélia

O frio da noite sempre acaba por amenizar o frio das águas. Não sei se o fenômeno se dá por contraste ou estímulo. Quando pequena eu via a piscina de casa como um grande armazém de calor. Ridícula, passava o dia a me envergonhar com sua água gelada para, de noite, quando as amigas já tinham ido embora, refletir todos os raios de sol em novas borbulhas de água morna.

O vapor levantava depois das nove, que seria esse nevoeiro? O cheiro de soro que emanava daquele tempo voltava agora com o vendaval de sensações naturais à beira-mar. O vento que me atacava vinha de peixes diversos, de guelras molhadas, montanhas de sal e algum marinheiro esquecido da noite que, por não ter com quem ter, deixou de tomar banho. Eu conseguia ver sua única luz amarela tremulando no fim da baía. De toda a praia, era o único que podia com meu desajuste. Desejei com muita força me lançar na próxima onda, aquela que vem se formando ao longe... Eu a alcançaria. Furaria-lhe em plena madrugada e daria oitocentas braçadas até o marinheiro solitário. Mas o mar, ao contrário da piscina, continuava frio a ponto de anestesiar meus pés, que estavam descalços e já não sentiam a diferença entre as conchas trituradas e a areia. Fui me dando conta de que essa diferença não existia de fato. A calça fina, preta e social e as mãos com as sandálias nos dedos e muitos grãos de areia ou concha a me incomodar, penetrar entre as unhas, raspar na panturrilha. A água vindo e voltando, impressão minha ou estava cada vez mais fundo?

A senhora não deveria nadar a essa hora. Pode dar hipotermia. - Mas quem disse? O roçar de um peixe já na cintura, eu estava mesmo nadando, que coisa! O mar acabou entrando em mim. Quando voltei pra areia só tinha vergonha, os olhos procurando outros olhos, a praia ainda deserta. Nenhuma resposta, nenhum encontro. De onde viera a voz?

E a areia a se agarrar. No meio, entre os dedos, em torno do calcanhar, por volta das calças, agora tão inchadas que já não incomodavam. Eu seguia meus passos sem saber o que pretendiam e eles pretendiam o asfalto e as luzes e o ladrilho e a livraria. Ensopada. Não seriam tolos de me mandar embora depois de tudo. Uma mulher à beira de um colapso, se esvaindo inteira em água salgada no tapete... Fingiram que não viram. Achei educado e pude finalmente respirar, passar a mão na cara, tirar o sal acumulado do canto dos olhos.

Até que uma nuca se revelou entre as prateleiras de madeira. Uma nuca bem aparada, de leves cabelos castanhos por cima. Uma nuca conhecida e perfumada. Não podia ser ele. E realmente não era. Era um livreiro bem jovem, com avental de treinamento. Sorriu pra mim com uma simpatia forçada. Posso ajudar? E então pensei, que, por que não? Afinal de contas, poderia ser ele (só não era).

Lembra de mim?, arrisquei. E ele finalmente abriu um sorriso que era quase uma risada.

Como poderia esquecer?, e voltou a ficar sério. - Espera, que eu só vou pegar minhas coisas e a gente já vai sair daqui. - Virou as costas pra mim e entrou na sessão reservada.

Fiquei esquentada. Não podia admitir, muito menos compreender. O homem dera seu pulo, como sempre dava. Quando eu pensava estar à frente, o caminho era ao contrário e eu só estava voltando. Nem podia admitir com calma e segurança que permanecia imóvel no meio da livraria, a criar poças no tapete, como um gole de cerveja quente que não desce, porque não esperava aquela resposta. Não estava pronta para um homem jogando meu próprio jogo.

A metáfora me fez desejar uma long neck. E fomos até o quiosque falando da névoa estranha e do cheiro de soro. Ele parecia tão íntimo. Pedimos as cervejas, que não vieram em long necks, mas em copos plásticos enormes, gostosos de se pegar o bastante para serem perdoados, e seguimos ladeira acima; era o mirante. A subida era de pedra e ele parecia não dar a mínima pros meus pés descalços. Ou pra minha roupa molhada. Não teceu comentário.

Tivemos de atravessar a névoa sem ver o pico. E quando chegamos lá em cima não vimos mais nada, só mesmo a névoa. Quem estava em cima, não via quem estava embaixo e o mesmo era válido para o contrário. E sabíamos, porque viemos de lá, que embaixo havia o mar. Não víamos nada, além de um pálido brilho amarelo e distante, mas sabíamos que o fundo estava cheio de água e que a água estava cheia de bichos e que os bichos estavam cheios de fome e de medo e de prazer, exatamente como nós dois.

Aquela situação estava ficando embaraçosa, mas somente para mim.

Olha... Você vai achar estranho, mas eu acho que não sou quem você pensa que eu sou. Sabe?, ergui as sobrancelhas esperando uma resposta. A resposta não veio. Ele só respirou fundo, interessou-se e sentou do meu lado. – Entende? Acho que você realmente não sabe quem eu sou.

Claro que eu sei. Te reconheci na hora que você entrou na livraria. - Ele sorria enquanto falava, olhando bem nos meus olhos. Era leve como andar de carro novo.

Isso não é verdade. Você primeiro perguntou se eu desejava alguma coisa...

Eu só estava fazendo o meu trabalho.

Aí ele disse que o mirante não estava muito bom naquele dia. Que só eles tinham sido idiotas o bastante pra subir. E além disso a cerveja tinha acabado.

Pode beber da minha...

Não, eu tô reclamando, mas vai que fico bêbado aqui em cima?, aí pra descer fudeu.

Acabei sorrindo, meio tonta. Eu realmente nunca tinha visto esse homem, porque de repente foi como se toda a minha roupa secasse. Eu não sentia um grão de areia. Estava confortável e satisfeita em cima de um pedregulho, quente e seguro como um pai, tomando maresia na cara, espuma de vento e vontade de mar.

Quem sabe então não foi você que mudou?

Ah, não. De novo isso?

Sinceramente eu queria não ter que fazer uma coisa ridícula como por exemplo pedir pra você dizer meu nome completo, mas eu sou bem racional e confesso que está cada vez mais difícil manter uma conversa normal com você.

Para com isso! - Agora ele era outra pessoa. Irritado, como se finalmente tivesse desistido do jogo. - De querer uma vida normal, um trabalho normal, uma conversa normal... isso não existe! O que seria uma conversa normal?

A cerveja tinha esquentado, amargou na minha boca e quase não desceu. Eu devo ter colocado dois dedinhos na testa, incrédula, e suspirado. Estava a ponto de chorar, porque era bastante provável que aquele homem me amava. Um homem que eu não conhecia, amando um amor que eu também não conhecia, mas que não podia perder.

Olha, desculpa, mas eu acho que isso pode ter a ver com os remédios. Eu parei de tomar por conta própria já faz um tempo e hoje mesmo, mais cedo, uma... uma coisa estranha aconteceu comigo. Então eu posso estar tendo algum tipo de lapso de memória ou outro efeito da abstinência.

Ele gargalhou. - Eu sei as suas falas de cor. É sempre a mesma coisa: aí os remédios, aí a memória, a abstinência...

Ei, eu tô toda molhada! - levantei pra mostrar a roupa. Agora sim eu tinha raiva, porque ele revirou os olhos, ele fez um esforço para mostrar desprezo. - Entrei no mar sem perceber, estava a ponto de morrer afogada...

...e aí você ouviu uma “voz misteriosa” te chamando de volta pra terra - ele completou.

Eu já estava de pé e por pouco não dei um tapa naquelas bochechas rosadas.

Eu também sou um cara racional, Amélia – ele pegou minha cerveja e deu o último gole – e poderia ficar aqui tentando te convencer de que esse seu lapso de memória é uma defesa psicológica que a gente já conhece, já entendeu e já conversou, e que você está tomando remédio sim, porque a Ana confere todos os dias, e que essa história de aparecer na livraria molhada não é novidade, mas eu não vou. Eu cansei demais.

Aí que tá!, eu não tô tomando o remédio! Isso vocês não entendem. A Ana é uma tonta. A pessoa mais fácil de enganar.

Não tem Ana nenhuma, Amélia. Acabei de te pegar.

Aquilo não tinha graça.

Agora você vai dizer que meu nome também não é Amélia?

E você achou que fosse? – e ele me empurrou.

Quando senti que ia cair, usei todo o reflexo e a força dos meus dedos e agarrei as rochas que encontrei pelo caminho. Duas unhas se quebraram, mas consegui segurar. Bati o queixo na pedra, meus pés balançavam no abismo.

Olha o que você fez! Agora eu vou ser preso! – e ele veio na minha direção, erguendo a calça jeans, o tênis esporte, e eu só tive tempo de virar o rosto antes de tomar um bicudo tão forte no maxilar que arrastou minhas unhas por vinte centímetros na rocha. Agora todas estavam quebradas, dez pequenos rastros de sangue, mas eu ainda não tinha caído.

Era isso que você queria, não era!? – e agora ele chutava meus meus dedos, pra ver se eu largava, e a cada chute eu sentia os pequenos ossos se partindo, a pele se rompendo, tudo esquentar e berrar. Às vezes dedos inteiros se perdiam na neblina, dois estavam pendurados por um fiapo de pele e ele continuava chutando. Eu gritava o mais alto que podia, mas juro que não era de dor. Aquilo durou um bom tempo, até que finalmente caí.

E, quando caía, percebi que a luz amarela vinha de uma bóia e não do barco de um marinheiro solitário. Fiquei triste, porque não estava caindo no mar, mas naquelas rochas pontiagudas que ficam na beirada.

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