Acendeu a tela do celular com a mão direita e viu que já passava da meia-noite. Antes de mais nada, é preciso explicar que Clara era uma exceção. Pra quase todas as regras germinadas nesse mundo, Clara era sempre uma exceção. Ela também era importante; especial, até. Seu tempo valia ouro, ela via de cima, ela previa as coisas e ela fazia feitiço. Ela também era gorda.
Assim que ela viu as horas, seu primeiro impulso foi fingir que não tinha visto e continuar navegando pela internet (embora o termo mais apropriado seja “dando cabeçadas”), mas a grande Clara, a que era cheia de importância, já havia sido acordada de seu sono irresistível. E essa mesma Clara, que não só se julgava importante, como realmente era, não conseguia contornar o absoluto e terrível fato de que já passava da meia-noite. E que ela precisava dormir logo, se não agora.
Ela até pensou em começar um filme, porque ao menos era uma coisa útil a se fazer de madrugada. Mas um filme começado àquela hora, ia, no mínimo, até umas duas... e aí já ficaria tarde demais pra Clara dormir. Não que ela não gostasse da noite. Ela inclusive amava. Mas no dia seguinte teria aula e levantaria às sete. É... melhor nem começar a ver esse filme. Daqui a pouco eu vou dormir. Só mais uma olhada nas fotos da Paula.
Clara tinha os cabelos vermelhos, pintados com tinta barata pela vizinha um pouco mais velha; e seu rosto era redondo como o universo. E agora eu não vou começar a dizer como a Paula, por outro lado, era gata e parecia a porra de uma top model em todas as fotos que colocava no facebook. Apesar de que era exatamente isso. Mas eu não vou dizer. Porque não faz diferença. Porque, na verdade, Clara não conseguia se sentir pior que ninguém. Ela olhava pra foto linda da senhora perfeição, enxergava a beleza, enxergava a perfeição e automaticamente começava a listar na cabeça todas as outras setecentas qualidades que a colocavam acima de Paula, não no quesito beleza, obviamente, mas em quase todo o resto. No fim das contas, o fato dela ser bonita parecia mais como uma esmola ou um prêmio de consolação.
Uma segunda olhada nas horas, desta vez no canto da tela do computador, e o horror bem ali, estampado. Já eram duas e quinze da madrugada! E ela começou a se sentir farta, antes mesmo de se sentir vazia. E desejou voltar atrás e ter visto o filme, porque ele já teria até acabado. Mas agora era tarde demais, melhor nem começar. Na verdade o que não podia era exatamente começar. Ela tinha que dormir. Só precisava despedir de duas pessoas com quem trocava mensagens.
A primeira delas era um menino do terceiro semestre, que parecia inteligente, mas que acabou se revelando, através de um “concerteza”, uma das piores fraudes daquela universidade. A segunda era sua própria irmã, que estava acordada no quarto ao lado, provavelmente travando a mesma batalha contra a madrugada e suas horas gulosas.
Mas como tempo é ventania (e vasto é o mundo), essa despedida acabou se estendendo um pouco e pairando por links misteriosos, vídeos secretos e receitas de macumba. E agora ela até podia ver ali as horas passando: minuto por minuto, sem qualquer surpresa, cada um deles como uma pequena espetada de florete, esperada e temida. E mesmo assim, alguma coisa de outro mundo mantinha sua enorme bunda deliciosamente acomodada na cadeira e seus olhos perdidos, diante de uma tela por onde passava uma infinidade de nada.
Foi quando aconteceu. Como que um resgate abrupto de alguém que há anos se encontrava caído num poço fundo, a ideia veio e ergueu a alma de Clara, lhe acordou de um pesadelo e tudo ficou cheio de luz e promessa. Ela só precisava ser realista: já que não iria dormir, e isso não dependia só dela, por que não aproveitar o tempo? Era isso! Ela iria parar tudo e dar play no filme. Porque ela jamais se perdoaria se visse passar diante dos seus olhos mais duas horas de coisas que ela poderia ter feito e não fez. A vida dela já vinha sendo formada por um bom número de horas assim. Dessa vez ia ser diferente.
Então ela fez o que devia ser feito. E cheia de uma energia vital, começou a procurar pelo filme. Parecia renovada com essa perspectiva inédita de madrugada. Tudo estava quieto e misterioso, quando ela se acomodou, deu o play e, oito minutos depois, dormiu.
2 comentários:
A única coisa negativa que eu tenho a dizer é que é uma pena que você não poste muito, nem aqui nem no A Morte Me Cai Bem. Não só um ótimo escritor de contos, mas também um excelente contador de causos, com uma visão muito interessante e engraçada sobre as coisas mundanas, é realmente triste o seu afastamento. Que o tempo, a rotina e o cansaço entrem todos em sintonia e permitam mais pequenos momentos em que você se sinta tentado a postar qualquer coisinha, só pra tira-las da mente, como uma Penseira.
De um admirador (que vive muito longe de você),
Mik.
Poxa, Mik... Que coisa boa (e ao mesmo tempo péssima) de se ler. Confesso que sua mensagem me deixou mais culpado que orgulhoso. Ainda bem, né? Porque eu tava mesmo precisando de uma injeção de ânimo. Muito obrigado. :)
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