Ela estava de pé, em frente ao assento preferencial do metrô, enquanto ele dividia o mesmo com uma senhora de obesidade mais ou menos mórbida. Ela reparou nele. E reparou que ele era algo muito próximo de lindo. E que tinha os olhos marrons. E que tinha o rosto levemente inclinado pra ela, como um convite.
Começou a se exibir com uma naturalidade perversa. Mudou a posição das pernas, se inclinou um pouco pra frente, fechou os dedos em torno do mastro de metal e sorriu. E ele não viu. Parecia extremamente distraído com alguma coisa que dançava no ar entre ela e o resto do trem. A necessidade de ser vista crescia. E a conexão existia, ela podia sentir. Era só uma questão de retina.
Usou de uma estratégia mais ousada e abriu o primeiro botão da camisa como que tomada por um calor repentino. Ela era toda perigo. Sentia os solavancos carinhosos dos trilhos percorrerem suas pernas, subirem pela virilha e se instalarem exatamente ali. No coração. Mas o contato visual continuava inexistindo.
A gorda acordou do seu cochilo, limpou a boca molhada, esfregou os olhos remelentos e desceu na estação seguinte, deixando o assento vazio. O jovem de olhos marrons continuava imóvel, olhando pro mesmo lugar que não era ela.
Foi quando, cheia de coragem e ardor, ela se aproximou. E quanto mais perto chegava, mais clara se tornava essa piada trágica do destino. De que os olhos dele, além de marrons, eram também opacos. E mortos. E que ela poderia abrir, um por um, todos os doze botões da camisa, que ele continuaria sem ver. A bengala ali, repousada ao lado do banco, onde sempre esteve.
Sentindo-se culpada e triste, ela sentou do seu lado. Mais por preguiça que por interesse. E, contrariando suas expectativas, ele virou o rosto pra ela. Os olhos estavam na reta, mas continuavam sem acertar o alvo. Alguma coisa de indescritível existia ali. Ela podia sentir, ele também.
Tocaram na mão um do outro. Primeiro de forma carinhosa, como um cumprimento; depois de forma apaixonada, como um terremoto. E ela estava chorando e sorrindo quando ele começou a tocar seu rosto com a mão esquerda, como alguém que procura um interruptor inexistente. A mão direita ele enfiou no bolso e trouxe de lá uma adaga prateada. Fez um movimento profundo, letárgico e começou a furar um dos olhos de sua nova amante. E ela permitiu, com uma resignação admirável. Sentia o sangue escorrer pelas bochechas, mas não conseguia sentir dor. Nem medo. E depois ele furou o segundo com o mesmo amor com que furara o primeiro.
E só então ela percebeu que ele tinha visto o sorriso, o decote e tudo o mais. Que durante toda a viagem, era ela quem estava cega.
E agora eles podiam se ver.
Um comentário:
Eu que estou lendo justamente ensaio sobre a cegueira. ...fiquei assim...Não cega, ,talvez muda, a mudez que se assume quando ainda não se digere o que se leu,ou ainda não sabe com quais palavras vestir as impressões.
Talvez cega, ao pensar que diante das pistas sugeridas, ainda assim, não enxerguei o não enxergar do personagem e só por isso mesmo enxerguei literatura,olvidando o dito no não dito.
O ver...e o visto problematizados não apenas no não dito, mas também no sugerido.
E justo num trem, onde estamos indo para o mesmo lugar em perspectivas tão diferentes.
Sabe que, pra mim, um metrô é um campo muito convidativo a escritas? Só depende da retina de quem o ocupa.
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