quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Jogue Suas Mãos Para o Céu

Ela gostava de deitar embaixo de uma árvore gigantesca e secretamente chamá-la de seu salgueiro lutador. A árvore era antiquíssima e vivia a duas quadras da casa dela. Sempre passava, não por ela, mas pela rua dela, quando ia andando pra escola. E podia ver de relance, entre um telhado e uma antena, seus galhos bisonhos, cheios de si e selvagens, prestes a dominar quase tudo. Gostava da árvore e era uma criança que lia muita bobagem.

Levava sua canga, seus panos todos. Tinha duas almofadas de um couro bravo, que não sujava por nada, e sabia encaixá-las exatamente como duas asas nas costas. Deixava as almofadas quietas, entre ela e o salgueiro. Abria um livro.

O lugar foi escolhido de propósito; tinha sua sombra inevitável, sua distância segura e era perfeito pra ela, que não só era romântica, como também nascera com um talento único para a composição de ambientes forjados, cenários construídos, que reuniam uma gama tão grande de prováveis focos de inspiração e beleza, que o lirismo era praticamente obrigado a descer pela gola.

Aquela árvore devia abrigar umas sete famílias de pássaros. Todo santo dia, quando ela chegava, a revoada fervia. E depois de acomodada, com as duas asas nas costas, via cada passarinho, um a um, voltar pro galho, já que não tinha perigo. O canto não era dos lindos, mas tinha seus picos de glória, num pio doce e alongado, que hora ou outra irrompia.

Mas como nem tudo são asas, cantos de ave e salgueiros, a menina acabou se perdendo por um caminho estranho. Começou a ler muita coisa cheia de vida e verdade. Começava a olhar pro mundo, com uma lente alterada. Não como se danificada, mas como se enfim resolvida. E tudo doía demais.

Até que um dia se deparou no metrô com uma senhora bem gorda, com as pernas completamente estouradas. Pareciam veias de um gigante, aprisionadas numa perna maciça. Algumas saíam pra fora, numa flor enorme e roxa. Outras circulavam a panturrilha como um lagarto marinho alongado, do qual se viam umas pontas e, ela jurava também, o sangue passando no meio.

Olhando pro rosto da dona, se comoveu num segundos com aqueles olhos imensos, doentes de tristes. A mulher da perna estourada, ela tinha os olhos exatos e comuns de quem já vinha lutando há tanto tempo que já nem se lembrava ao certo se tinha algum prêmio no fim.

Foi ali, naquele instante, que a menina sentiu a lágrima de um olho descer, por compaixão mais pura e simples, e junto com ela uma pele minúscula, rolando bochecha abaixo. Foi tentar recolar sua pele, mas o trem tremelicou e ela esbarrou os dedos na cara, voltando com metade do rosto nas unhas.

Disseram que tinha uma doença obscura. Hanseníase simbólica, ou hanseníase literária (ou ainda, em alguns condados, lepra poética). Era bom evitar o contato dos seus livros com a mão de qualquer pessoa. Ela devia queimá-los e manter uma distância segura de qualquer amigo ou irmão. Não era bom que falasse por mais de cinco minutos. Não era bom que apresentasse trabalhos, que publicasse na internet, que escrevesse poemas. Essa doença é terrível e contamina bem fácil.

Numa outra viagem de trem, esbarrou com um rapaz de olhos tão misteriosos quanto irresistíveis. Nem precisou chegar muito perto para sentir uma dorzinha de nada apontar na agulha, mas, não satisfeita com o trombo, foi atrás escada acima. E eles viveram uma coisa tão boa, que ela se esqueceu do salgueiro, deixou seus livros de lado e manteve a boca fechada.

Até porque num segundo nem boca mais ela tinha. Bastaram dois beijos para que ela se descolasse inteira, beiço e tudo, nos lábios daquele rapaz. E ele levou a boca dela. Levou também sua voz tão quieta, e aproveitou pra cantar.

Era verdade que a moça já vinha andando calada, mas sem a boca no rosto, era difícil comer. E sem comida pra comer ou voz pra cantar, ela se meteu num silêncio muito magro e discreto, no canto da sala de estar. Passavam por ela e olhavam, cheios de pena e ternura, e ela sentiu que começava a escorrer, braços pernas, virilha afora e que ela precisava sair dali, antes que fosse só água.

Foi atrás daquele rapaz, dos olhos fechados em si, e, na falta da boca, teve que usar muito os braços e as duas mãos e os dedos, de modo que não levou muito tempo até que ela fosse só um toquinho simpático com duas pernas fincadas.

Voltou pra casa pensando em todas as partes que tinham ficado pra sempre nas partes daquele rapaz. Nas partes que estavam perdidas e que, pra falar bem a verdade, já nem lhe faziam mais falta. Com os joelhos e os dedos do pé ela juntou os seus livros; os poucos que ainda restavam, os que ela não tinha queimado, e foi com eles pra árvore, sedenta por distração.

Não fosse a chuva miúda que começava a cair, talvez ela até pudesse ler por mais uns dias. Ela já conseguia passar as páginas com o dedão do pé esquerdo. E as almofadas nas costas, cada vez mais, lembravam as asas de uma mariposa, com o corpo dela no centro, em vez do de uma lagarta. Mas além da chuva ainda tinham as aves, que vendo escorrer certo leite, foram atraídas num salto para os olhos da nossa menina. Esses olhos tão vivos e espertos, a percorrer muitas linhas, eram as únicas partes que ele ainda não tinha roubado. E os pássaros começaram a bicá-los, enquanto ela ia formando na mente a última frase possível.